Bruna Caram, cantora, compositora, escritora e atriz, é de Avaré (SP).

Você é uma artista “ansiosa”, quer estar em todas as linguagens artísticas, sente isso formigando em você. Se a sua família não fosse tão musical, você acha que sua carreira poderia ter enveredado por outro caminho artístico?
Eu acho altamente possível, mas não responsabilizo a minha família por trabalhar com música – às vezes até me incomoda quando dizem “ah, a sua avó era cantora, o seu avô era violonista, então não tinha outro jeito, né?”. É claro que tinha! (risos) A música na minha família nunca foi uma profissão, digo, nunca foi vista como uma maneira de ser famoso ou de um jeito super sério. Música é um modo de estarmos juntos, sempre foi. Eu tenho mais ou menos 30 primos e ninguém mais virou músico profissional. Mas todos fazem música!

Quantos primos!
É, a última vez que contei eram 27, mas não para de nascer gente, já estão nascendo os filhos dos primos… A música não era levada por esse lado em casa, então foi difícil para mim virar cantora. Quando eu era criança, queria ser desenhista! Eu amava desenhar, a minha primeira arte foi o desenho e hoje é a última da qual me aproximo. Passei um período no Rio gravando a minissérie “Dois Irmãos” e me reconciliei com o desenho, era o meu ritual de concentração: desenhar a casa, o quarto da personagem, o papel de parede… Então acho que, sinceramente, eu poderia ter sido qualquer coisa!

Ao mesmo tempo em que diz que não foi culpa deles, você vê que estar mergulhada nessa atmosfera causou efeitos na sua vida, claro, né?
Sim, e acho que mais do que na profissão, na memória afetiva. Só que ela carrega a nossa vida toda, não só a profissão. Então a minha família é responsável pelo profundo afeto, por meu desejo de fazer arte e tocar as pessoas. A minha família é muito afetuosa, muito próxima. Sou colada neles! Tenho algumas amigas que brincam que, antes de me chamar para sair, precisam perguntar se não é aniversário de nenhum primo! (risos) Porque em geral é! E sempre é bom, eu acho que a minha família formou o meu caráter e o meu caráter teve que passar através da música – e isso sim me levou a querer viver dela.

Por que você falou que foi difícil?
Porque eu não sabia se “ser cantora” era uma profissão para ser levada a sério, sinceramente. Eu, como muita gente, achava que estava mais próximo de ser um hobby, não sabia se dava para viver disso ou não! O que me fez entender o que é ser cantora como sacerdócio, o que é ser artista e doar a vida para isso, foi ler a biografia da Elis Regina quando eu tinha 15 anos. Ao ver a braveza e o furacão que ela realmente era, entendi que aquilo não significava uma “brincadeira”, porque eu comecei a cantar por diversão, com nove anos! Essa passagem foi muito marcante para mim: “Ah, cantar não é brincar, não é ‘eu nunca trabalho, só me divirto’.” Eu precisei quebrar isso e entender que eu dedicaria a minha vida, estudaria todos os dias, faria o que fosse necessário e faria muito bem.

É sério, é difícil, e é uma delícia ao mesmo tempo…
E a minha família também não foi tão aberta quanto se supõe, o meu pai nunca quis e até hoje ele fica falando “Cristo, tenho uma filha artista”. (risos) Mas o meu pai não é do meio, ele é engenheiro, mas toca também. É que ele tem aquela coisa tradicional: “Você vai fazer faculdade e não vai fazer Música, né?” Mas aí eu, adolescente, fui conversar com ele e disse que, se fizesse outra coisa, garantia que trancaria no meio. Eu até poderia fazer outra coisa depois, mas não antes. Daí um dia, ele mais emocionado, acho que era a época do meu primeiro show, disse assim: “Posso falar um negócio? O que quer que você faça, seja a melhor.”

Como não sentir isso depois de ver a sua filha fazendo um show e sendo incrível?
Derretendo corações, né… (risos)

Qual é o seu instrumento favorito de ouvir?
O mesmo de tocar! (risos) O acordeon. Quando eu ouvia esse instrumento nas gravações dos meus discos, quando ia um músico para gravar, nossa, era o dia em que eu chorava no estúdio – sempre. Acho o timbre tão profundamente brasileiro e tão tocante, tão chorado, tão lamentoso… Estudei piano a vida inteira e nunca soube tocar bem, nunca fiquei satisfeita com a minha maneira de tocar nem me sentia à vontade para brincar com o piano. Já o acordeon, em um ano, sem fazer aula nenhuma… Qualquer coisa que eu tocava, achava lindo – e acho até hoje.

Que bonito! Lançar um disco autoral é se mostrar muito para o mundo. Você cria muitas vontades/expectativas com relação ao que deseja quer causar nas pessoas com o seu último disco?
É engraçado, mas acho que, para eu ter essa coragem, na verdade primeiro tive que me distanciar, porque eu, ao contrário de muitos artistas, me preocupo demais com o que vão achar, e sempre quis adivinhar o que as pessoas queriam ouvir para poder me antecipar e apresentar o som que estava faltando. Até eu entender que isso não era o essencial, que o que importa não é o que querem ouvir, mas o que querem ouvir de mim e o que eu posso fazer de melhor. Ainda assim, gravei o disco meio que em segredo! Muitos amigos me encontravam e eu dizia “meu disco vai sair logo mais” e eles diziam “que disco?! Você está gravando disco?”.

Aí eu entendi que não contei para ninguém para não ter que falar que era um disco autoral, para não ter que criar expectativas nos outros, e essa é a razão provavelmente pela qual eu quis lançar de surpresa e começar a turnê no ano seguinte. Ainda é difícil para mim. Até hoje, quando escuto a primeira faixa do disco, me dá um certo arrepio por eu estar cantando e tocando sozinha. Sinto um pouco de vergonha e ao mesmo tempo eu dou risada, porque é muita cara de pau, mesmo! (risos) Me dá orgulho e medo. Mas só de saber que é uma coisa que eu não tinha peito para fazer antes e que estou fazendo agora, mesmo que achem ruim, já valeu ter dado a cara a tapa. Hoje em dia eu entendo que a função do artista é dar a cara a tapa mesmo! E se for para apanhar…

Você tem essa relação louca com a música brasileira, feita no Brasil. Queria saber como você se relaciona com a música gringa. O que você mais gosta de ouvir, o que mais mexe com você?
Ah, eu amo também, é que a minha formação foi muito brasileira, mas o jazz entrou na minha vida na época da faculdade e a música erudita me encanta. Não tenho capacidade de ser cantora erudita, jamais tentarei por estes lados. Eu acho que jamais…

Duvido. Mas tudo bem, não falei nada, só fingi que concordei…
(risos) Não dá para saber mesmo, mas mais por uma questão técnica, a técnica que eu uso é muito diferente da erudita. Também amo música francesa, a Edith Piaf é uma das minhas divas da vida, ela me marcou muito. Durante a época de “Dois Irmãos”, a música árabe entrou também e, nossa, veio uma coisa meio ancestral, porque a minha família é de origem libanesa e eu nunca tinha tido contato. É impressionante o que a música pode fazer para te levar para lugares diferentes, te tirar do seu “cantinho”.

Ser uma artista completa é um presente e uma sina ao mesmo tempo, né.
Um sofrimento! Sem fim.

Você quer estar em todos os lugares, cantar, dançar, escrever, fazer músicas, interpretar… Como você organiza essas vontades todas na sua cabeça?
Eu não organizo, eu surto mesmo! Acho que é uma profissão impossível de não ser levada para o pessoal – a minha carreira não pode mais não ser a minha vida, não consigo separar. Tenho vários momentos de angústia em que penso “vou desistir, não vou mais me aproximar disso, se acontecer, aconteceu”. Não dá uma hora e eu já quero ligar para não sei quem, fazer não sei o que lá, ter uma ideia, criar um negócio… Não dá para trabalhar neste meio sem sofrer e acho que, como o nosso emocional é usado também, não dá para criar um escudo contra isso, porque acho que tudo o que a gente sofre acaba sendo combustível. Se eu diminuir a sensibilidade, como artista não vai ser bom.

Você é muito intensa nesse sentido?
Muito. Meu namorado brinca que tudo para mim é o melhor ou o pior do mundo! (risos) Estou sempre tendo que lidar com uma tentativa de criar estabilidade emocional sem destruir essa sensibilidade muito forte, da qual a gente precisa. É difícil e talvez sem tristeza não exista arte! Por que dizem que os personagens mais legais são as vilãs? Porque elas são tristes, sentem raiva, o conflito está nelas – e sem conflito não tem história.

Queria falar um pouco sobre a sua experiência na série “Dois Irmãos”, que deve ter sido um evento na sua vida, né? Um acontecimento!
Foram oito meses, sendo três só de preparação.

E foi apenas com o Luiz Fernando Carvalho, só isso.
O “cacique”, como eu o chamo. (risos) Lembro quando me ligaram falando do teste e me explicaram o que iria acontecer. Disseram que já tinham o meu papel e que, se eu passasse, começaríamos a gravar no ano seguinte, então eu ficaria três meses no Rio fazendo aulas de língua árabe, dança, improvisação… e eu fiquei tipo “ai, posso ir só para fazer as aulas?! Não precisa nem me escolher! Quero muito fazer estas aulas” (risos) Nem digo que a preparação seja mais marcante, porque depois na gravação você “vive”, mas ir criando as camadas com as pessoas, perdendo os medos…

…Entendo o seu corpo, descobrindo coisas…
Cada dia uma coisa nova! Realmente parece aquela coisa de incorporar um espírito que vem e tem que te permitir. Como diz o Sergio Penna, um preparador do Rio com quem eu trabalho, “primeiro de tudo, chame o seu personagem, deixe-o se sentar ao seu lado, leve-o ao cinema… Ele precisa querer chegar”. Ele também diz que a diferença entre você consigo mesmo e você com o personagem é só o tempo de convivência! Para mim a Rânia foi um presente e eu não poderia ter pedido nada melhor. Uma personagem cheia de rancores, camadas, mistérios, tristezas… E com uma força e uma liderança que me ajudaram depois, no disco.

A sua trajetória te trouxe – e traz – muitas parcerias, né?
Sim! Mas tudo devagarinho, sabe? Eu sempre tive medo de chamar… Não medo, mas receio de convidar e soar oportunista. Tenho horror a isso! Foi neste disco, o “Multialma”, que finalmente chamei Roberta Sá, Antonio Nóbrega, Chico César… Porque agora eles são meus amigos e, se falarem não, sei vou zoar, falar “poxa, sacanagem”. Dá para dizer que ninguém veio obrigado, para ganhar cachê ou mesmo para me ajudar.

É parceria.
Sim. Parceria.

Escolha uma parceria que tenha te emocionado muito.
(pensa) Olha, acho que ainda é a minha primeira música com o Pedro Luís. O conheci através da Roberta Sá, que já era minha amiga. Quando eu pedi uma música para o Pedro, morrendo de vergonha – sempre assim, travada e morrendo de vergonha – ele mandou uma que, por alguma razão, eu não achava que encaixava no repertório. Aí tive que ligar para ele e dizer “poxa, Pedro, eu adorei, mas não é bem isso” e ele falou que “estava tranquilo”. Eu pensei que ele fosse falar “tudo bem, te mando outra”, mas não, rolou um “beijo, tchau!”. O cara que eu mais queria que me mandasse uma música era ele, eu não sabia o que fazer.

Aí fui atrás de um poema para mandar e fiquei com a tela aberta, sabe, naquele “mando ou não mando?”, aí mandei! (risos) Depois de um tempo, ele me enviou a “Pode se Animar”, a minha primeira música forte, com essa imagem da mulher empoderada, que vai dar a volta por cima e fazer tudo acontecer, e que vai seduzir também… E logo na sequência, ele me mandou um e-mail assim: “Bruna, sabem quem esteve aqui em casa outro dia? O Ney. E eu mostrei a nossa música para ele, que animou muito, achou sensacional. Acho que a gente fez um hit, viu? Um beijo.” Gente, eu fiz uma música e o Ney adorou! (risos) E o Pedro virou o meu super parceiro, fizemos show juntos, viajamos pelo interior.

Você viu [a peça] “Gota D’Água [a seco]”?
Assisti. Nossa… E eu amo a peça, li o livro, tinha o CD da Bibi Ferreira… Tiveram fossas da minha vida em que eu só chorava com “Gota D’Água”. (risos) Bibi Ferreira, ela sim é referência. Falando e cantando naquele álbum, com a voz meio rouca, aquilo ali é matador. Fui ver “Gota D’Água [a seco]” por causa disso, e tendo direção musical do Pedro… Assisti na semana em que o Domingos Montagner morreu, eu estava sem entender o que era o mundo e o que estava acontecendo, então chorei um pouco mais do que o esperado. Mas muito foda! O Pedro é sensacional. Pedro Luiz, I love you. Te amo.

Que fique registrado! Tem alguma parceria que é o seu sonho de consumo?
Engraçado, porque sempre perguntam com quem eu quero cantar, então eu costumo pensar em um cantor… Como eu sou uma compositora recente, nunca tinha parado para pensar com quem eu gostaria de escrever. Eu amaria compor com Jorge Drexler, que eu amo, e Caetano Veloso, né? No meu caso, mais Caetano do que Chico. Eu acho o Chico Buarque o melhor compositor do universo, mas eu digo que, apesar disso, o “meu” compositor é o Caetano.

Mais uma: em 2017, tivemos a série e temos a turnê. Se a gente pular para o fim do ano, o que você gostaria que tivesse acontecido?
Ai, meu Deus! (risos) Sabe quando você tem até medo de imaginar? Eu gostaria sinceramente, muito, que eu estivesse fazendo ou terminado de fazer o meu primeiro longa como atriz. Eu quero fazer cinema! E mais do que isso, cinema pernambucano, que é “o” cinema do Brasil. Eu, como fã de cinema, já prestigio muito essa arte específica de Recife, e eu tenho um pé no Recife, uma paixão enorme pelo Nordeste todo, mas por lá em especial. E gostaria de estar fazendo uma turnê deliciosa, passando pelas capitais, que é o que eu adoro, e, como eu já matei o a vontade de cantar fora (ano passado cantei em Portugal, na Espanha…), muito mais do que sair do Brasil, o meu sonho é fazer cinema aqui. Saber que eu entrei no meio do cinema nacional. Seria matador!

Fotos: Carolina Vianna | Entrevista: Fernanda Meirelles

MARÇO DE 2017

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