Heitor Dhalia, diretor de cinema, roteirista e produtor, é de Recife (PE).

Como você desenvolveu a sua relação com imagem ao longo da carreira?

É interessante, porque, na verdade, a primeira coisa que me chama a atenção nos projetos são os temas, os assuntos que vou abordar. Você normalmente tem uma intuição que te leva àquele universo, àquela discussão temática, e cada vez eu me preocupo mais com o que a retórica da ficção diz, o que o assunto propõe enquanto discussão e que relação ele tem com o mundo. Porém sou meio escravo da imagem, muito ligado em conceitos estéticos, em buscar partidos estéticos e construir universos estéticos – o que eu acho até uma limitação como diretor. Não consigo fazer qualquer filme, desconsiderar a construção da imagem e a beleza. Mas tem gente que não liga tanto para a beleza, sabe?

Era a primeira coisa que eu tinha vontade de te perguntar, conhecendo o seu trabalho…

Gosto de construir imagem, beleza. Tem a ver com pintura, conceitos de fotografia, de luz, com o que é belo! Eu adoro diretores que fazem isso: você pega um Visconti, um Antonioni, Kurosawa, Kubrick, Coen… Todos constroem muito bem os seus universos, e acho que a construção do universo estético de um filme tem a ver com a dramaturgia e com os personagens, sim, mas tem a ver também com como cada diretor aborda isso, porque ele está, de alguma maneira, construindo a realidade de novo a partir de escolhas que se dão muito mais por redução do que por soma. Você reduz a realidade para o que te interessa e isso vai construindo um campo estético interessante – a partir de uma paleta de cor, um conceito de imagem, um conceito de fotografia. Cada diretor faz isso de um jeito ou de outro. Só que tem gente que não liga tanto para isso, que não acha tão importante ou não sabe fazer, porque não é fácil.

Você também tem uma ligação muito forte com história, porque é roteirista, mas quando entendeu que a imagem era o universo que mais estaria presente na sua vida?

Acho que no meu primeiro longa, “Nina”. Fiz um curta antes que já tinha um pouco desta busca visual, mas no longa foi obsessivo, era um universo inspirado em “Crime e Castigo”, em São Paulo, um pouco surrealista, sombrio. Ali já foi um mergulho e radicalizei nesta pesquisa. A partir disso entendi que seria assim – até quando não quero! Mas é claro que fui sofisticando e aprendendo a dosar. Tem filmes que faço e falo “vai ser realista, naturalista”, mas não sai assim. (Risos) Fiz agora dois filmes que teriam tudo para isso, mas são extremamente elaborados visualmente. Não consigo fazer um longa que aborde aspectos do “feio”: mesmo filmando em uma favela ou num lugar de palafitas vou escolher onde tenha o maior partido estético e algum interesse visual. Tem uma frase que diz que a arte é a perseguição da beleza. É você achar no mundo o sublime, além das mazelas e das questões humanas. Mas a arte tem um lugar estético como função, sabe?

A minha relação com a imagem foi se desenvolvendo assim, não sei muito como, mas se você olha todos os filmes que fiz… Até no documentário sobre yoga na Índia [“On Yoga: Arquitetura da Paz”] e eu tinha a preocupação de não saber fazer um documentário, “não sei o que é documentar, sou um cara que constrói a imagem, como fazer uma coisa que é um retrato da realidade?”. Aí você vê o documentário. É absolutamente lindo, concorreu ao Oscar da Fotografia, desenvolvou partidos estéticos. Tudo bem, estar na Índia e em Nova York ajudou, eram locações incríveis, mas tiveram partidos que a gente desenvolveu: de lentes, de horário de luz – filmávamos só no começo da manhã e no final do dia, só nas horas maravilhosas de luz. Tem quem não tope isso, ficar o meio do dia inteiro parado. Você tem que estar com vontade e entender que isso é importante. Mas é o olhar de cada um.

Como você se conecta com cores? “Tungstênio”, por exemplo, tem muita cor, é tudo muito saturado.

Na verdade “Tungstênio” é até uma exceção, meus filmes tem paletas mais controladas. Neste tivemos dificuldades: como fazer de um jeito “elegante” um filme na Bahia, que é um universo tropical, uma cidade do Nordeste com muita luz, muito sol, em que somos acostumados a ver o tropicalismo e uma explosão de cores primárias? Começamos a pesquisar fotógrafos, Miguel Rio Branco, pessoas que fotografaram a Bahia, que fotografaram Cuba, e fizemos um lado frio na fotografia: é saturado, mas é frio, com predominância de azuis, a exposição é pela alta, tem pretos muito sólidos. A gente foi achando estes conceitos da produção da imagem: lentes todas angulares, tudo 12 a 18.

Nossa! Bem aberto.

O filme inteiro! Escolhemos estas cores e trabalhamos com uma paleta muito definida nos figurinos, nas pinturas de arte e nas locações, que também buscamos a partir de conceitos: Cidade Baixa, sempre uma comunicação com a água… A pessoa que vê o filme não nota, mas percebe o efeito. Fizemos uma tradução daquela Bahia, uma Bahia dura apesar do universo colorido do Nordeste, até folclórico, mas era a Bahia quente, meio “Tristes Trópicos”, muito à beira da marginalidade, pessoas no limite da sobrevivência, com conflitos intensos.

Assisti a “Serra Pelada” no cinema e, quando lembro do filme, penso em cor. Me deixou uma sensação de ocupação, de colorido, de escuro também de alguma forma. Assim como o documentário.

No documentário era Índia, né…

…Não tinha nem como fugir!

Você abre a câmera e estão lá o marrom, o verde, o laranja. É muito incrível, o lugar mais cinemático do planeta! “Serra Pelada” era um delírio na Amazônia, um filme mais difícil de produção. Tivemos muitos problemas de execução para recriar aquele universo, mas também partimos de conceitos, das fotografias da época, do Ektachrome dos anos 70 e 80. Tinha a coisa dos marrons, da terra, do ouro, da exuberância e do delírio da febre do ouro, um excesso de cor, de informação. Você vai elegendo. Mas tenho uma dificuldade com cor, a maioria dos meus filmes, como falei, tem paletas muito controladas: “Nina”, “O Cheiro do Ralo”, “À Deriva”, que tinha aquele azul do mar, mas uma paleta super rígida. O filme que eu fiz nos Estados Unidos [“Gone”] é um longa do qual não gosto muito, mas tem uma paleta toda escura. Agora este próximo filme, “Ana”, no teatro, tem uma paleta sombria…

Em qual teatro vocês filmaram?

No Sesc Pompeia, no teatro do Masp e na casa do Paulo Mendes da Rocha. O filme é todo modernista. Lina Bo Bardi e Paulo Mendes da Rocha. Filmamos também na Praça das Artes, de arquitetos que se inspiraram nestes dois. Em um restaurante no Copan também, Niemeyer… Tudo cinza, concreto, preto, azul. Agora vou fazer um filme sobre funk, por exemplo. Vai falar também sobre ativismo nas periferias e milícias. É altamente contemporâneo, roteiro do Luiz Eduardo Soares, um grande pensador da Segurança Pública no campo progressista. Faz um retrato deste Brasil que, de alguma maneira, está em transição: uma periferia de pessoas que foram à faculdade, o que está muito em xeque agora por conta destas novas políticas, e conflito também, a guerra das milícias, Rio cidade conflagrada, totalmente tomada pelas máfias militares. É um desafio: como fazer um filme sobre funk? Qual é a estética?

A forma de contar uma história para um brasileiro em português e para um norte-americano em um filme de Hollywood dentro de um circuito comercial é muito diferente?

Olha, eu acho que é, sim. Temos uma linguagem universal, que é a dramaturgia: todos os seres humanos conseguem conversar a partir de uma base construída que tem mais de dois mil anos. Temos o drama, o personagem, o conceito de protagonismo, conflito, cena, ato dramático… Esta é uma sintaxe universal. Aí tem as particularidades de cada região, o que interessa a uma maioria de pessoas e o que é específico de um país. Às vezes a gente faz histórias que são brasileiras e não são inseridas num contexto dramático, nessa maneira de contar tradicional ocidental da narrativa. Quando você não segue isso, fala com menos pessoas. É uma escolha. Tem gente que não segue, é gênio e consegue falar com muitos. Agora, a língua, por exemplo, é uma barreira. Tem quem não consiga ver filmes em certas línguas, e o português é uma que tem resistência.

É mesmo?

É. E assim, você consegue quebrar isso? Consegue, “Cidade de Deus” quebrou, “Central do Brasil”, mas para uma audiência pequena. Por exemplo, no caso de “Cidade de Deus”, foi seguindo uma narrativa já consolidada no cinema americano, é meio scorceseano o filme, de máfia, de um gênero, com uma narração, multiplots, segue uma tradição. Agora você pega “Central do Brasil”, uma história clássica, de conflitos humanos… Aí é do caralho, conseguiu um feito. Não é simples e o cinema brasileiro tem uma tradição vanguardista muito espelhada no Cinema Novo, que por sua vez é espelhado na Nouvelle Vague, que é um cinema de ruptura, de quebra narrativa, de busca de linguagem, então quando você vai por esse caminho, imediatamente reduz o público. E temos um problema sério: muitas vezes os nossos filmes não são vistos nem aqui. Os longas brasileiros estão dando traço – por um problema de competição de mercado, falta de espaço, o publico não está interessado, talvez uma ressaca do próprio país, autoestima baixa. E tem a mudança das tecnologias também. Muitos filme sendo feitos e aí nada mais interessa, você não é obrigado a ver mais nada. Estamos com esse problema de curadoria, de excesso de informação. Problema contemporâneo.

O seu trabalho é muito politizado. Como você se orienta no meio desta confusão dos últimos anos, principalmente do último? Você vai seguir como estava ou se sente na obrigação de falar mais e falar mais alto?

Acho que temos uma urgência de falar de temas mais quentes e refletir o mundo em que estamos vivendo. Isso é forte. Apesar de sempre ter feito filmes que tinham suas questões, eu não me pautava por isso, buscava análises do ser humano. Me interessa mais, na verdade. É o que me interessa de verdade. Só que temos temas tão urgentes, interessantes e contraditórios que somos obrigados a olhar para eles Entre um filme que só faz uma análise psicológica ou que trata uma questão mais de agora, as pessoas estão preferindo o último. O mundo está muito conflituoso, em transformação, vários vetores. Estamos vivendo um momento muito particular da História.

Esquisitíssimo.

Total. Guerras de narrativas, pós-verdade e o que há depois disso. Falta de respostas. As pessoas estão meio desgarradas, sendo capturadas por qualquer discurso populista nessa complexidade da fragmentação contemporânea, pós-verdade, autoverdade, fake news. Muitas investigações profundas precisam ser feitas, porque também não adianta a gente cair na tendência das redes sociais de ir na manipulação e nos comportamentos de manada, seguir o fluxo da maioria… Mesmo em bolhas. Você acha que está sendo original, mas está repetindo uma coisa que foi criada em outro lugar. Para mim isso ficou muito claro nas últimas eleições, todos os avanços que vimos no passado acontecendo com os movimentos de identidade – movimento negro, movimento feminista… Hoje eu compreendo que o grande campo de batalha disso tudo são as universidades americanas.

Como assim?

Pegamos a propagação de uma discussão americana e a gente nem sabe disso. Quem sabia? Bolsonaro. Assisti a um debate americano sobre o politicamente correto e quando vi aquilo… O cara aqui tinha a campanha mais moderna de todas, a mais avançada. Daquele jeito tosco, mas ele pegou os temas certos. Lá nos Estados Unidos esta discussão já está muito avançada.

Tem empresas norte-americanas que dão consultoria sobre isso, né.

Sim, e fiquei impressionado com o grau da discussão que ele trouxe pra cá, com temas que nós não achávamos que eram temas. “Por que esse cara está trazendo isso agora?” E na verdade eram pautas, mesmo, nós é que estávamos ignorando. A gente viveu os últimos anos na la la land. É por isso que o exercício da crítica, do pensamento e da profundidade do olhar tem que ser feito cada vez mais, para você não cair em armadilhas do seu campo de pensamento – ou do campo posto como seu.

E se distanciar também dessa coisa de “manada”, de encontrar um grupo com o qual a gente se identifica.

O raciocínio é esse: como a identidade é construída? Você encontra quem pensa igual a você, se alia automaticamente a alguns temas – mesmo que não concorde totalmente com eles – e vocês elegem inimigos comuns para reforçar a identidade. Quem é externo ao grupo é inimigo e será distruído, estando certo ou errado. Por exemplo, um caso atual, temos o escândalo do João de Deus. Descobriram um filme aprovado pela Lei do Audiovisual, da Ancine, sobre ele. Ok, beleza, primeiro que não se sabia do problema – inclusive agora o filme fica muito melhor, porque se o cara for inteligente, ele tem um filmaço na mão -, só que pessoas interessadas em destruir o campo da cultura falam “está vendo? Estão fazendo um filme sobre esse cara com dinheiro público. Acaba, Lei Rouanet!”, o que é uma manipulação total, porque uma coisa não tem nada a ver com a outra.

É uma simplificação absurda do discurso!

Mas eu acho que o Cinema vai passar. Vai sobreviver. O resto, não sei. Porque o Cinema tem um fundo setorial específico, e talvez o Bolsonaro vá perdendo essa vontade de polemizar. No trailer de “Tungstênio”, por exemplo, tem um comentário de um cara dizendo que “se tiver tal logo, é Lei Rouanet!”. (Risos) Nada a ver. A gente vive esse momento de delírio total.

Você consegue pensar em dois filmes que ama e que gostaria muito de ter feito?

Fácil! “Os Sete Samurais”, do Akira Kurosawa, é uma obra-prima, um dos meus filmes favoritos. É sobre a guerra, sobre o tempo. Uma grande metáfora sobre a luta do dia a dia, essa batalha que a gente vive. O filme fala também da vida camponesa, do homem trabalhador, da sobrevivência. É um primor estético, certamente adoraria ter feito. O outro é “O Leopardo”, do Visconti, um filme também maravilhoso e político. Fala da queda da aristocracia italiana e do nascimento e a ascensão do poder de uma burguesia através de uma revolução. E as classes dominantes às vezes se aliam a revoluções para permanecerem no poder depois. Porque às vezes penso nisso, tanto a direita quanto a esquerda, os pensadores, são a mesma classe – claro, as causas são maravilhosas de alguns lados, mas sempre tem um jogo de poder e alguém que fica ali. Este filme fala um pouco disso.

É a História, estes momentos históricos são o ser humano se ajustando dentro do conflito que é estar vivo. E a arte tenta olhar para isso, entende? Por isso que os artistas são sempre, em qualquer situação, perseguidos de alguma maneira, porque sempre trazem o lado crítico. Quem olha para o ser humano e tem pensamento crítico está sempre na linha de frente: a imprensa, pensadores, diretores. Quem aponta a contradição é destruído. “Fake news” é isso, você desacredita qualquer narrativa de verdade, qualquer pensamento contraditório. Parte-se de uma semi-verdade e de uma mentira, aí misturam as duas coisas e pronto, está feito. Pegam quem quiserem!

Como pegam! E muitas são bem feitas: as pessoas se esforçam!

Total. E parece verdade, faz sentido, mas é mentira. Como o filme sobre o João de Deus. Alguém resolveu fazer uma coisa sobre um personagem que despertava um interesse de bizarrice, um fenômeno social, que valia. E agora jamais valeria? Pelo contrário, agora é que valeria mesmo! E nem sei o filme será feito ou não. Mas essa é uma guerra cultural anterior, o problema destas pessoas está nos avanços e também nos excessos que aconteceram – e a gente sabe disso. Estamos vivendo uma porrada ao contrário. Mas é a História e ela é feita de terremotos também, de incêndios, de guerras e acho que é um desses momentos. É bacana estar aqui nessa hora para ver isso acontecendo. É um momento único e vai dar muito pano para manga.

Apesar dos pesares.

Uma lição atrás da outra. É desafiador e acho que agora vão surgir muitas narrativas interessantes, não só aqui no Brasil, mas globalmente. Estou bem animado para entrar nesse jogo – aliás, já entrei. Só acho que tem que ter inteligência, não dá para ir no óbvio, precisa ser mais mais sagaz e fugir das armadilhas em que a gente se enfiou nos últimos anos. E ser mais esperto – porque eles foram e ganharam.

E agora, como produzir um discurso que chegue nas pessoas que não estão interessadas?

Tem que traficar temas, contrabandear. Uma coisa dentro da outra, um tema dentro de um gênero. Um filme de funk, por exemplo, e dentro dele você coloca outros debates, o cara vai achando que vai ver um filme sobre funk e leva outros questionamentos de brinde! (Risos) Mas tem coisa que não vai chegar mesmo, porque as pessoas estão elegendo o que querem.

Fotos: Carolina Vianna | Entrevista: Fernanda Meirelles

JANEIRO DE 2019

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