Filipe Catto é intérprete, cantor e compositor. Nasceu em Lajeado (RS).

A gente tem pensado em formas diferentes de falar sobre assuntos recorrentes em entrevistas, sabe…
Sim, tipo “quem são as suas influências”! (risos)

É, dá para papear sobre quem você paga pau porque acha foda sem te perguntar se você busca ser igual a alguém…
Eu, por exemplo, não costumo escutar nada que se pareça muito comigo. Escuto coisas diferentes, é muito difícil eu ouvir música buscando alimento, não busco exatamente onde as pessoas acreditam que eu busque, tipo “preciso chegar em casa e ouvir um disco do Milton”. Eu não vou fazer isso, apesar de amar o Milton. Entende?

Claro! Bom, existe, na sua trajetória, um momento de virada, em que você entendeu que tinha “dado certo”, que viveria de música?
Tive vários momentos de confirmação, mas a verdade é que nunca houve um “plano B”. O meu pai é músico, a minha família é de músicos e, mesmo tendo feito faculdade de Design Gráfico, me cerquei de várias artes para poder alimentar a minha música, que sempre foi o que eu fazia bem e de forma natural. Eu era bom naquilo, gostava de música, cantava muito bem. Sempre gostei de arte e a música era onde ela se expressava mais facilmente, mas eu gostava de desenhar, de cinema, livros, revistas, todos os conteúdos de arte me interessavam. Tanto é que sou muito influenciado por arte, não só por música. Um filme, uma peça, o desempenho de um ator me inspira, uma fotografia pode me inspirar a chegar a lugares estéticos e emocionais com a música… Quando eu era criança, sabia que ia trabalhar com isso. Não sabia se seria cantor ou produtor, mas seria com música e, se não fosse, seria com arte.

Aos poucos, é claro, a vida vai mostrando qual é o nosso lugar. Comecei a cantar com o meu pai, vi que o palco era um lugar muito forte, comecei a fazer eventos. Aquilo, para mim, era um ofício sério. Eu sempre vi a música e o palco como uma puta responsabilidade que eu tinha que encarar fazer, era uma exposição muito grande. É louco porque é uma profissão ambicionada demais e é difícil quando você está trabalhando com uma coisa tão subjetiva.

Você é filho único?
Não, tenho um irmão mais novo.

E ele é músico também?
Ele toca superbem, é um músico nato, mas faz faculdade de Comércio Exterior.

Olha! (risos) Vai ser a ovelha negra da família?
Acho que ele vai decepcionar o meu pai! Tô brincando.

Eu li umas coisas sobre você e, em uma delas, você dizia que, se fizesse outra coisa, seu pai ficaria decepcionado.
Eu acho que ficaria mesmo, sabia? Porque ele pegou pesado comigo, assim, ele foi um grande tutor, me esculhambava, era terrível, mas foi bom porque eu tive que fazer muito bem aquilo ali. Música era uma coisa séria, meu pai era de uma excelência grande: às vezes, eu tinha que cantar na frente de centenas de pessoas num evento, numa formatura… Tinha que fazer bonito, que saber a letra. Me lembro do meu pai falando assim: “Tem que aprender a letra, não pode ler, tem que saber o que você está cantando!” E acho que muito dessa coisa de ser intérprete veio disso, de ler a letra, ficar encanado em decorar. Às vezes eu passava horas estudando a letra.

Que demais ter uma família com essa veia artística! Qual é a sua parte favorita do processo criativo?
Palco. Eu gosto de chegar no palco e apresentar o trabalho. Sinto que o palco é o parto. Todo o trabalho anterior de composição, concepção, gravação, foto, clipe… Tudo é gestação para o palco. Eu sempre seleciono o meu repertório ou componho músicas pensando sobre como vou cantar aquilo no palco, ensaio muito antes de escolher o repertório, acho importante tocar estas músicas com a banda ou num show, em alguma circunstância, para eu saber como ela soa comigo, como se dá no meu corpo, para eu poder, depois, levá-la para o palco de forma que eu a conheça melhor. Mas a verdade é que o repertório só fica maturado depois de um tempo. O “Tomada”, por exemplo: sinto que ele está no seu apogeu agora, depois de um ano de lançamento. Agora o show está fantástico, queria ter estreado este show! (risos)

Tem artistas que se relacionam de uma forma diferente com shows – para alguns, em um determinado momento, vira um repeteco de algo, cai na rotina. Com você isso não acontece?
Não, para mim nunca é rotina, eu estou o tempo todo mexendo no show. Ele estreia com uma linha mestre, uma proposta estética, um repertório, uma condução, uma direção, mas coisas entram, outras saem… Eu gosto muito da arte quando ela está viva desta forma. Por isso que eu gosto de gravar discos, acho uma coisa muito gostosa, mas não sou over identificado com disco. Porque sei que o disco é uma mentirinha. Eu só posso ter a relação com o disco na hora de fazê-lo e, quando estou ali, estou 100% presente, mas no palco é onde eu consigo ter esse processo mais vivo. No palco sinto a possibilidade de estar o tempo todo criando, ali você pode simplesmente inventar uma letra no meio do show! Fazer o que quiser! Eu invento o tempo inteiro no palco e essa é a coisa mais maravilhosa. Eu amo, amo, amo o que faço. E não interessa para quantas pessoas eu canto: no palco, o prazer é meu, é meu o tesão. É claro que adoro quando as pessoas gostam, me emociono, acho do caralho, mas chegou um ponto em que a transcendência é tão pessoal que ninguém vai me tirar o prazer de fazer música.

E as pessoas se identificam com isso.
Sim, mas tem uma hora em que a gente aprende que precisa se desligar da expectativa dos outros, do seu público. Se você ficar preso a isso, não evolui com o seu público, e o que sinto é que existe uma grande palavra na vida: evolução. Você precisa evoluir, se arriscar, é muito saudável e importante. Tem momentos no palco em que acho que vou entrar em combustão! (risos) Juro! Porque é tão bom fazer aquilo. Eu sou louco por isso, amo muito.

Para você, no seu trabalho, qual é a relação entre música e performance?
Performance de palco vem da música, então nunca montei uma performance de palco. Um show é pensado para que eu possa ter toda a liberdade do mundo para fazer o que quiser. É tudo muito orgânico, o palco vai evoluindo naturalmente, vão acontecendo coisas e você não pode fechar e enrijecer. Pelo menos no meu processo! Preciso da experimentação, é importante para mim. A performance precisa partir do que você está fazendo com a canção. Eu tento não colocar algo em cima da interpretação da música. A performance precisa estar em sintonia com o que está acontecendo no palco, com o público – e dentro das circunstâncias do show.

Invariavelmente as pessoas dizem que você é uma mistura de muitas coisas. Li que a sua voz é um condomínio, porque moram muitas vozes ali.
Ai, que louco isso!

Achei legal. Queria saber se esse tipo de coisa é boa para você de ouvir ou se te irrita.
Não me irrita! Eu tenho pouco tempo de carreira, lancei o “Saga” em 2009, faz sete anos, o “Fôlego” foi 2011, faz cinco anos, e considero este o momento inicial, apesar de o EP ter dois anos na época. Acho que é natural que, no começo da carreira do artista, o público procure lugares para defini-lo.

E o jornalista também acaba fazendo isso, porque precisa dar algum tipo de referência.
Exatamente, você tem que referenciar, acho natural. Tem gente que aceita, curte, deita em cima disso e tudo bem! E tem gente que não – sinto que fazer o contrário é o caminho mais difícil, porque quando você não aceita os rótulos e quer ser você simplesmente, é mais difícil para as pessoas te assimilarem, então sinto que a minha trajetória até aqui vem sendo uma luta contra os preconceitos dos estereótipos. Gentilmente eu recuso as comparações, compreendendo que elas são naturais, mas, para mim, não fazem a menor diferença, então não são um elogio, nem uma crítica, são só a visão que o outro tem de mim.

E essa visão vai ser diferente de pessoa para pessoa!
Exatamente, e acho que, quando as pessoas te colocam nesse lugar, estão querendo te dar um selo de aprovação. Fora que existe a coisa de ser intérprete: isso se perdeu durante um tempo no Brasil e agora está voltando, não só comigo, mas com a Alice Caymmi, a Simone Mazzer, o Johnny Hooker… Durante os anos 2000, a gente saiu de uma referência que era Ney Matogrosso, Milton Nascimento, Maria Bethânia, Elis Regina, Gal Costa, que são intérpretes, cantores exuberantes com vozes exuberantes, e isso ficou de lado um tempo. A imprensa e o mercado da música deram muito espaço para o “cantautor”, o cantor que é compositor, que chega com o violão e apresenta suas músicas. De certa forma, sinto que fui uma das pessoas da nova geração que veio com essa bandeira do intérprete old school, que canta tango, samba, rock… “Gente, você parece a Elis, parece o Ney, a Fafá de Belém, a Maria Bethânia, o Caetano jovem…” Eu já ouvi cada coisa! A verdade é que as pessoas queriam dizer que estavam me identificando como um intérprete, que é uma colcha de retalhos. Você não consegue encaixar um intérprete especificamente num gênero, e eu gosto disso: odeio gênero para tudo, como é que eu vou gostar de gênero para música?

Você fala sobre “não se encaixar”, acho que isso para um artista é libertador demais, né?
É ótimo! Mas é uma coisa que você vai aprendendo com a idade e, como eu comecei muito novo, aprendi a duras penas. Não preciso ser compreendido. Você não precisa me compreender com a cabeça, não precisa me definir, me aprovar, não precisa me dar nenhum prêmio nem me botar em nenhuma lista. Só me deixe cantar.

Você consegue pensar em uma ou duas músicas que, quando ouve, pensa “nossa, como eu queria ter feito isso, que foda”?
Tem uma gravação de “I Put a Spell On You”, da Nina Simone, que é uma das coisas mais maravilhosas, amo aquela música. A gravação de “Enjoy The Silence”, do Depeche Mode. Esta música me leva a lugares tão incríveis! Tem uma do New Order que eu amo, “Crystal”. Também gosto demais da música do Echo and the Bunnymen, “The Killing Moon”. Amo. Traduz muito bem o meu espírito. Agora, das músicas que eu gravei, “Ave de Prata” e “Iris e Arco” também traduzem a minha natureza. Tem algumas músicas que são inacreditáveis, a composição… “Futuros Amantes”, do Chico Buarque. Essa música é bafo, é foda demais! “Olhos nos Olhos” é maravilhosa. E “Fera Ferida”? “Acabei com tudo, escapei com vida.” Tem também “As Aparências Enganam”, da Elis. Acho um absurdo essa música.

Pensando no Filipe de hoje: se você tivesse a oportunidade de estar no palco com qualquer pessoa viva ou morta, quem você escolheria?
O meu sonho é cantar com a Bethânia. Também gostaria de cantar com a Elis, mas eu não ia conseguir cantar, então escolho a Bethânia. (risos) Apesar de eu não ter uma preferida, a Elis para mim é muito forte. Se eu boto um disco da Elis para ouvir, não consigo fazer outra coisa, fico prestando atenção em tudo o que ela faz.

E se você pudesse ver qualquer pessoa ao vivo?
Seria a Janis Joplin. Janis, Janis, Janis. E o Jim Morrison. Nossa, vocês viram o documentário sobre ela (“Janis: Little Girl Blue”)? É maravilhoso, é incrível, ela é foda. É lindo o documentário, ela era uma pessoa muito legal.

Na sua trajetória como artista, quais são os momentos de êxtase e quais são os momentos de angústia?
Cara, a delícia é o palco, a catarse. E a dor é o desamparo de viver uma profissão no Brasil que é tão desvalorizada. Eu, sinceramente, não posso falar nada, porque me considero uma pessoa muito bem-sucedida, mas a verdade é que, para ser artista no Brasil, você precisa fazer muitas renúncias, né? Precisa aprender a viver com menos, porque é um trabalho que requer muito desapego – o que é bom, na verdade. Eu acho que ver a minha geração fazendo música, hoje, é um ato heroico. Estamos conseguindo fazer um trabalho digno independente, circular com ele e produzir diante das novas tecnologias. A ainda temos os festivais, que são fundamentais para que a gente circule, os selos independentes, a internet… Hoje eu vejo as novelas tocando músicas da nova geração. Sinto que essa é a música brasileira hoje, não é só Anitta. E a Anitta tem um papel importante na música, ela é uma das maiores artistas do Brasil. O problema é quando não temos o outro lado: você não pode dizer que a Céu está, hoje em dia, com o mesmo peso e importância na mídia que a Anitta. E isso é errado, mostra o quanto a gente está numa briga desigual – e essa desigualdade é o problema. Esta é a dor, além da instabilidade de existir um mercado cultural tão frágil no Brasil, a ponto de uma mudança de governo ser uma ameaça. Você não pode viver num país onde uma mudança de governo seja uma ameaça para a cultura.

Fotos: Carolina Vianna | Entrevista: Fernanda Meirelles

NOVEMBRO DE 2016

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