Dani Libardi, cineasta e artista plástica, dirigiu “3%“, a primeira série original brasileira da Netflix. Ela é de Piracicaba (SP).

Teve um momento em que “virou a chavinha”, em que você entendeu que trabalharia com arte?
Acho que sei desde criança. Além de cineasta, sou artista plástica. Comecei a fazer aulas de desenho com 6 anos. Minha mãe achou que eu tinha talento – comecei a desenhar antes de escrever – e foi virando parte da minha personalidade isso de se expressar artisticamente. Quando eu estava no cursinho, não sabia o que prestar de faculdade: não queria Artes Plásticas, porque eu já desenhava. Achava interessante o curso, mas não sabia se era isso o que eu queria mesmo. Foi quando, pesquisando, descobri o Audiovisual. E o que me motivou a fazer foi essa possibilidade de contar histórias para muitas pessoas que você não conhece e que não vai encontrar pessoalmente. Você filma algo que pode rodar o mundo! Na época em que prestei nem existia YouTube, acho que foi no segundo ano da minha faculdade que ele começou. Então tudo fez muito sentido e esse é meu desejo, contar histórias para as pessoas e emocioná-las sem precisar necessariamente ter alguma coisa em comum.

Você é de São Paulo mesmo?
Não, sou de Piracicaba.

E veio para São Paulo para fazer faculdade?
Foi, estudei na USP, Audiovisual na ECA.

Você continuou trabalhando como artista plástica durante a faculdade?
Aconteceu uma coisa engraçada. Eu parei de desenhar quando entrei na faculdade. Parei. Talvez porque estava tão empenhada em aprender uma nova forma de expressão artística, o cinema, que é muito menos intuitivo do que o desenho. No cinema tem câmera, lentes, misancene, é mais complexo. Eu desenhava um rabisquinho ou outro, mas só. Acho que foram uns cinco anos de hiato. Até que, um dia… Sabe aqueles momentos da vida em que nada dá certo? Todos os seus projetos dão errado, você tem que sair do seu apartamento… Eu não estava conseguindo emplacar nenhum curta, nenhum filme, nada, aí pensei: “vou ficar louca se eu não filmar, se não fizer alguma coisa. Vou voltar a desenhar!” E foi assim! Fui a uma loja, comprei o material de desenho e desenhei. Não ficou a coisa mais incrível, eu estava destreinada, mas, nossa, vi como produzir era bom. E decidi voltar a ser desenhista. Criei uma página no Facebook, coloquei meus desenhos e foi bem legal. Então entendi que não precisava escolher entre ser cineasta ou artista plástica e quis misturar coisas do audiovisual com meus desenhos. Fiz um game para computador, o “Vagalumia“, que está em produção ainda. Ganhou o edital da Spcine para desenvolver e agora estou produzindo na guerrilha, tipo vocês com o Três por Quatro. Nele, todos os desenhos são feitos no papel, daí escaneio e os animadores animam a partir dos desenhos. Além disso, tenho um amigo que é produtor do Zeca Baleiro. Falei para ele que queria fazer um clipe e, uns anos depois, rolou. O Zeca fez um disco infantil que se chama “Zoró“, em que cada música é de um bicho. Fiz o clipe da música do pardal!

Muito legal ver a sua arte ganhando forma em outros lugares e por meio de outras pessoas.
Uma coisa que gosto muito no Cinema é o coletivo, acho que o produto fica melhor quando a gente joga com o outro e aquela pessoa melhora o projeto, mostra outro ponto de vista.

O “3%” começou sendo um projeto de faculdade?
A gente estava na faculdade, mas não foi para a faculdade. Fizemos para um edital chamado FICTV, que financiaria oito pilotos e, deles, três virariam séries. Daí passamos para fazer o piloto… e fizemos! Chamamos uma equipe incrível e, imagina só, a gente estava no quarto ano da faculdade, não tínhamos nos formado ainda… Nós, os três diretores do piloto e o criador [Pedro Aguilera], éramos da mesma classe.

É a mesma equipe que fez a série agora?
Nós, sim! O resto mudou tudo. Bom, fizemos o piloto e gostamos do resultado. Me orgulho muito do piloto. Aí passou um tempo e colocamos o material no YouTube. Foi um sucesso! A gente não esperava. O público brasileiro gostou muito dessa ideia de fazer uma distopia brasileira, a galera queria saber o que iria acontecer, pediam pra gente encontrar um canal… E nisso se passaram sete anos até as coisas darem certo. Ouvimos “não” várias vezes, mas os fãs não abandonaram o projeto. Cara, toda semana a gente recebia recados dizendo pra gente pensar na Netflix, que alguém ia criar uma petição para colher assinaturas… Nesse nível! As pessoas se empenharam mesmo. E foi ótimo porque, quando dava vontade de desistir, a gente dizia “não, gente, ainda dá, essa história ainda rende”. Daí o Erik, que é o vice-presidente de conteúdo original internacional da Netflix, viu o piloto no YouTube e escreveu pra gente.

Ele escreveu para vocês?!
Pois é. Já era meio óbvio que isso fazia sentido de tanto que as pessoas falavam… A gente estava com o projeto na Boutique Filmes, que é a produtora da série, então iria acontecer, mas sim, foi ele quem escreveu! (risos)

Caramba. Nossa! Ver isso tudo acontecendo deve ser meio surreal, porque a Netflix está mudando a forma de se comunicar, basicamente.
Não sei se eles mudaram o mundo ou se entenderam que o mundo tinha mudado. Bom, aí rolaram negociações e, em agosto do ano passado, foi anunciado que rolaria. Convidamos o César Charlone, que é um ídolo, diretor de fotografia de “Cidade de Deus”, para ser diretor-geral. Além dele, somos mais três diretores, eu, a Daina Giannecchini e o Jotagá Crema.

Como foi fazer parte deste processo coletivo?
Para a gente foi muito natural! (risos) Eu os conheço há dez anos, desde o começo da faculdade. Claro que nós fizemos outras coisas, seguimos nossos caminhos, mas trabalhamos muito bem juntos e fazemos muitas coisas juntos, então é meio natural, mesmo. Eu gosto de saber o que eles acham do meu trabalho e gosto de conversar e decidir as coisas com eles. Foi muito legal porque o César conseguiu entrar nesse núcleo e trazer o conhecimento dele. Funcionou essa coisa de juntar dois backgrounds tão diferentes! Imagina, ele foi indicado ao Oscar de Melhor Fotografia!

Como foi para você lidar com a expectativa e a ansiedade?
Passei a semana anterior à estreia sem dormir! Assim que saiu, fomos assistir na casa do Aguilera. Era uma sensação bizarra, não parecia que estava disponível para 190 países – parecia que a gente estava dando play num render do nosso computador. Acho que a gente só foi entender quando vimos no Twitter as pessoas falando. A hashtag #3porcento entrou para os trending topics mundiais! Foi um absurdo e vimos que estavam gostando, fomos lendo comentários positivos…

Você ainda tem expectativas com relação a este projeto? Como lidar com elas?
Ah, agora estou no momento de absorver e entender o lugar disso no mundo e no Brasil. O que espero é que seja a primeira de muitas originais brasileiras da Netflix, que isso traga um momento novo para o audiovisual daqui. Vai ser maravilhoso: os produtores, roteiristas e atores brasileiros têm muitas histórias boas e interessantes para contar, sobre temas com os quais o resto do mundo pode se identificar também.

Sobre o feminismo: como você se posiciona com relação a isso, onde você insere esse engajamento?
Eu tento colocar o feminismo em tudo o que faço e está ao meu alcance. Claro que nem todos os projetos são absolutamente feministas, porque às vezes simplesmente não vem ao caso, mas é um tema que me move. “3%” não é uma série sobre feminismo, mas é feminista, tem protagonistas mulheres fortes. De quatro diretores, duas são mulheres, o que é super acima da média no Brasil, infelizmente. E, voltando aos meus desenhos, quando passei a desenhar de novo foi quando descobri que era feminista – e comecei a colocar isso no que eu criava, especialmente no que diz respeito a representação do corpo da mulher. A gente não vê – ou vê muito pouco – em Publicidade e Audiovisual mulheres fora do padrão de beleza, sabe?

Era muito louco que, quando eu estudava desenho e ia estudar anatomia humana, via os modelos e todos estavam dentro do tal padrão. Você nem sabe muito bem desenhar gente velha, gente gorda… A gente fica se perguntando como é. E isso aconteceu muito a partir do meu próprio corpo, que eu sei como é, eu tinha acesso a uma pessoa gorda, mulher, eu sabia como era e comecei a desenhar pessoas gordas, mulheres gordas. Foi fantástico: um dia, desenhei uma menina bem gordinha e estava tudo muito bonito ali, as proporções… Achei bonito o desenho. (pausa) Até me emociono. Pensei: “cara, ela é bonita – por que eu não seria bonita, sabe?” (pausa) Se ela é, eu também sou. Por que preciso querer ter outro corpo? Por que não posso gostar de mim? A partir dos desenhos, fui me aceitando e, por causa deles, muitas meninas começaram a me escrever. Elas falavam coisas tipo “ah, eu sou gordinha também, poxa, seus desenhos são tão bonitos!” ou “eu sou gordinha, mas não tenho peito como as meninas que você desenha, sinto que sou a ‘gordinha errada'”. Aí comecei a desenhar as meninas com peito menor também, com celulite… Entrei em contato com meninas que provavelmente nunca vou conhecer pessoalmente! É legal que meus desenhos tenham ajudado garotas a se aceitarem, isso me dá muito orgulho. A gente tem que se ajudar.

Se você pudesse escolher um artista plástico para desenhar com você e criar algo em conjunto e um cineasta ou uma pessoa do Audiovisual para dirigir algo com você, quem você escolheria? Dois nomes.
Nossa, que difícil essa pergunta! Olha, tenho uma coisa com a Tarsila do Amaral. Ela foi importante quando eu era adolescente, isso de ter uma figura mulher na História da Arte que a gente estuda me marcou. Agora, um cineasta… Talvez as irmãs Wachowski, que fizeram “Sense 8”, que eu acho de uma delicadeza de direção incrível, e também, é claro, “Matrix”. Ah! E tem a Laerte, que é maravilhosa.

Qual é o lado mais delicioso de estar vivendo esse processo agora e qual é o lado mais difícil de tocar um projeto destes no Brasil?
O mais delicioso é o privilégio que isso traz, de você poder falar com pessoas do mundo inteiro, transmitindo uma mensagem na qual acredita. Isso é o que me move. E o mais difícil é não desistir, né? Pagar o aluguel enquanto as coisas não rolam.

Você pode falar bem sobre isso de exercer a arte da espera e de perseverar.
O negócio é entender que não é porque não aconteceu agora que não vai acontecer nunca mais. Acho que nem tem a ver com espera, mas com isso de aceitar que não foi agora, deixar guardado e fazer outros projetos, outras coisas. Aproveitar as oportunidades! O mundo não é justo, ele não premia quem faz as coisas boas. Acontece quando você está no lugar certo, na hora certa e, por acaso, tem um projeto. Aí, cara, pega esta chance e vai!

Fotos: Carolina Vianna | Entrevista: Fernanda Meirelles

DEZEMBRO DE 2016

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