Anelis Assumpção

Anelis Assumpção, cantora e compositora brasileira, é de São Paulo (SP).

Quando você decidiu trabalhar com arte e música, aconteceu algo que te carimbou esse caminho ou sempre foi tão natural na sua vida, na sua casa e na sua história que simplesmente aconteceu? [Anelis é filha de Itamar Assumpção]

Um pouquinho dos dois – não teve uma coisa, assim, mágica. Foi muito fluido. Eu queria estar envolvida com arte de qualquer forma, era uma coisa que eu sabia e sentia dentro de mim desde pequena. Não tinha muita certeza de qual arte era, mas eu tinha um exemplo, né, de uma pessoa que possuía este ofício, porque, na prática, arte é uma escolha, é um trabalho, vai ter que ser desenvolvido, ter técnica, aprimoramento, conhecimento… e investimento, que, muitas vezes, é o que faz com que seja possível.

Enfim, eu gostava daquilo e comecei muito jovem a trabalhar com o meu pai, ajudando-o a produzir os shows, entendendo devagar como funcionava ser contratado por alguém, por um Sesc, por uma instituição ou para um festival, o que significava aquela cadeia de trabalhos autônomos… Eu tinha uns 16 anos. Meu pai não tinha uma equipe ou um escritório, e isso tudo me fez pensar “olha só, eu estou inserida dentro da arte, posso estar dentro da arte, fazendo, possibilitando que ela exista e que aconteça… até mesmo sem ser uma artista”. Acho que foi o clique mais interessante que tive, ainda adolescente, porque eu achava que, para ser um artista, as pessoas tinham que carregar quase que uma magia, um toque de Midas que só alguns recebem. É claro que tem isso, mas acho que é uma paixão muito mais interna – e era o que eu via no meu pai, ele era muito apaixonado por produzir pensamentos de arte.

Ali, adolescente, entendi que não teria um trabalho longe da arte. Depois, fui afunilando os meus desejos e as minhas paixões e fui entendendo que comunicação também era uma uma potência que eu tinha – e que eu não sentia as mesmas que o meu pai sentia sendo um artista no Brasil… As minhas angústias eram de outra ordem, de um outro tempo, a partir do corpo de uma mulher. 

Conheço muitas pessoas que falam que sempre quiseram fazer isso na vida, parece que nasceram com essa convicção, mas eu fui entendendo conforme as coisas aconteceram – quando o meu pai morreu eu era muito jovem, né? Tinha 23 anos. Isso mudou tudo na minha vida, imediatamente eu assumi uma responsabilidade de cuidado e de preservação para que eu pudesse postergar aquela memória. Eu acho que é a arte quem me escolheu: “Garota, tudo o que você fizer vai ser debaixo desse guarda-chuva mesmo. Da arte”.

Te vejo como uma paladina da memória. Como se você se relaciona com esse conceito – memória – com essa “ação”, que, para você, vira trabalho, vira projeto, vira tanta coisa?

A memória é uma intersecção com a arte do ponto de vista da nossa formação, é a base de entendimento das civilizações todas, a memória está dentro desse espaço, desse pensamento. Foi muito difícil para mim perder meu pai, eu era muito nova, ele era muito novo, parecia errado. Eu tinha muita aflição de esquecê-lo, essa foi a primeira coisa que me despertou isso de ser atenta a tudo o que ele criou, queria ensinar os meus filhos, contar quem era aquela pessoa. Claro, tinha uma coisa prática que tinha que acontecer, que era um inventário de obras e materiais, e foi difícil, porque eram obras, eram músicas, não tinha nenhum bem material naquele inventário, mas era um inventário com mais de 400 canções. Demorou seis anos para ser finalizado e fui, nesse tempo, aprendendo o que significava essa herança, o que era um bem imaterial… E tinha a minha mãe, né? Ela sempre foi dona de casa, então, quando o meu pai faltou e ela ficou, nós ficamos muito preocupadas com esse desamparo. E demorou seis anos para ela poder começar a receber, como herdeira, os direitos autorais dele. Tive que correr com esse lugar da praticidade, da garantia, desse direito de entender isso tudo – misturado com o fato de eu sentir muita falta daquela pessoa. E eu tinha uma bebê, a Rubi tinha um ano. O meu pai morreu e eu queria que ela soubesse quem ele era.

Tudo vai se juntando a partir do momento que eu tenho que entender minimamente juridicamente o que significa o que eu e minha irmã estávamos herdando. A minha mãe passa a ser sustentada pelos direitos autorais e aquilo tinha uma importância simbólica muito forte, porque é para sempre. E isso alimenta uma coisa muito bonita na minha mãe até hoje.

Fiquei misturando tudo isso, fui entendendo como era relevante, como ele era uma pessoa querida, muito importante, ele tinha muitas vertentes para além da canção e da composição. Aí fui romper essas bolhas e tirar o meu pai da USP, localizá-lo dentro de um outro lugar na sociedade, apresentá-lo para toda uma comunidade negra que não sabia quem era ele, fui fazendo e fui entendendo o que precisava. É uma honra passar adiante a existência dessa pessoa. Entendi que precisa-se ter um lugar seguro dentro das histórias contadas: de onde a gente vem, o que a gente faz, por que é que a gente é assim…

Você gosta das palavras e as palavras gostam de você. Fiquei curiosa para saber se essa relação com as palavras também é tão antiga quanto a sua relação com a música. 

É de sempre, mas não na escrita! Eu falo muito, sempre fui assim. Meu entendimento é de que tenho uma relação com as palavras, sim, adoro falar, gosto de conversar e, para isso, você tem que gostar das palavras. Gosto de pensar, gosto de falar, então acho que me relaciono assim – mas eu tinha muita preguiça de escrever quando era criança. (Risos) E a minha irmã sempre escreveu muito, muito bem, era uma coisa absurda, impressionante, ao passo que ela era muito calada, bem tímida, então a gente escolheu a mesma coisa, mas de formas diferentes. Depois eu acho que fui ficando com essa vontade de pesquisar e, quando comecei a fazer canções, a pesquisar formatos, gêneros, sinônimos, aí foi ficando uma delícia. É muito gostoso escrever, e é muito importante. Para mim, é muito importante. 

Você gosta de trazer a cidade para a sua arte. Como é a sua relação com São Paulo?

Como a maioria dos paulistanos: não me vejo fora, mas não aguento mais morar aqui. (Risos) Toda vez que saio de São Paulo, falo “eu moraria nesse lugar… por uma semana!”. Eu gosto muito de viver em São Paulo, sou realmente apaixonada pela cidade, mas acho que eu subaproveito o que ela pode me dar, estou ficando um pouco mais cansada, com dificuldade com multidões, muita gente, é muita coisa cheia, tudo o tempo todo, você se senta num lugar para comer e tem música ao vivo, tem gente falando alto… Estou me afastando um pouco mais dessa São Paulo e me aproximando do restinho de coisa boa que ela tem, que é a vida cultural muito intensa, muito forte, com muita produção em todo canto da cidade! Estou indo mais para esse lado, explorando fora do centros, tentando consumir os espetáculos… Tudo o que acontece de sexta a domingo é uma loucura! Claro que a gente não tem como dar conta, mas me dá muita alegria saber que isso está acontecendo – mesmo que eu não esteja lá.

São Paulo te alimenta também para o que você faz…

Muito! Me alimenta completamente, eu sou uma voyeur da cidade. Mais do que eu saio e consumo, eu observo pelos outros corpos e pelo trabalho que eu faço, mas é uma particularidade, porque nem todas as minhas amigas contemporâneas, artistas e cantoras, são como eu. Eu passo dias sem sair de casa. Dias. Tranquilamente! Sem sair mesmo, ou só levo o meu filho à escola e vou à feira. Posso viver São Paulo assim por muito tempo – e aí eu fico me perguntando: por que é que eu moro aqui, né? (Risos)

No seu último álbum, você olha para a maternidade e traz com você mulheres falando sobre isso. Puxar feminismo para a pauta já é algo muito importante e poderoso, mas, trazer um tema como maternidade… é corajoso. Foi difícil ou você se sente livre para falar sobre isso?

Eu acho que é corajoso, e acho que é covarde, também, porque nem deveria ser uma questão. Para quem é mãe e passa por essa experiência de alguma forma na vida, não era para a gente precisar ter coragem. Essa é a máquina mais importante para a humanidade poder existir! É a única potência possível. Independente de como ela for. Independente se era filho de barriga, filho criado, se é mãe de santo, essa simbologia que está sempre atrelada à figura paterna como a possibilidade do ser humano evoluir é um equívoco. Eu não “quis” falar sobre maternidade, eu só não consegui falar de outra coisa. Era um sentimento que precisava muito acontecer. Eu fui mãe muito jovem, tinha 21 anos, sempre vi um julgamento, um preconceito muito grande, “Meu Deus, o que que você fez da sua vida?”, Meu Deus, como é que você cuida dela?”. Eu ouvi tanto esse tipo de pergunta absurda, tanto, tanto.

E isso mudou muito quando eu tive o Benedito, aos 31 anos, dez anos depois. Mudou muito também porque eu estava casada com o pai dele. Comecei a reparar como o corpo da mãe no mundo não importa, sempre vai ter julgamento. É assim o tempo inteiro. Vai haver um julgamento sobre o que você fez ou não e isso me atravessa há 20 anos.

A maternidade foi o maior impulso que eu tive para ir de encontro com o feminismo que construo todo dia, com a minha natureza, para entender a minha mãe, o patriarcado… Não “quis” falar sobre maternidade, ela “está”. Assim como quando as pessoas falavam “ah, você fez um disco feminista”… Sim, porque eu sou feminista! Está dado. E eu sou mãe, isso vai passar pela minha poesia de várias formas, do jeito que dói e do jeito que é lindo. 

Você consegue escolher uma ou duas músicas que fazem você pensar “nossa, como eu queria ter feito isso”?

“Magrelinha”, do Luiz Melodia, é uma música que eu ouço e penso “como é que eu não escrevi isso, gente?!” (risos), e “Asa”, do Djavan. Mas, nossa, são muitas! 

Tem alguma coisa ou algum projeto que você gostaria muito de realizar artisticamente, mas que ainda não fez?

Fazer cinema! Adoraria escrever, atuar, dirigir… Acho que atuar primeiramente, até porque escrever e dirigir requerem uma técnica que não tenho ainda – mas me interesso e tenho feito essa pesquisa com outras pessoas que escrevem! A escrita que desenvolve criação de personagem não é o meu foco de pensamento para a hora de escrever, mas acho que posso contribuir muito… E isso é muito gostoso, me interessa o processo criativo do cinema. E adoraria atuar, gente, eu queria ser a Capitã Marvel! (Risos) 

Você pode, por favor, se descrever para alguém que nunca te viu e não sabe o que você faz ou quem é? Como faria isso? 

O meu nome é Anelis Assumpção, tenho 43 anos, sou uma mulher cis negra de pele clara, o meu cabelo é cacheado e está levemente aloirado, é curto, agora está preso com um elástico para cima, mas ele é bem armado geralmente. Eu estou usando uma blusa azul, é uma regata, está muito calor hoje, com short jeans de malhar, e estou descalça. Tenho algumas tatuagens nos braços, no braço direito borboletas, no braço esquerdo, no ombro, um passarinho que a minha filha desenhou, tenho outras tatuagens pelo braço, com os nomes do meu pai e da minha irmã que faleceram, um brinco no nariz, uma aliança e uso óculos verdes grandes, bem largos… e sou míope. Sou cantora, compositora, escritora, mãe da Rubi, que tem 22 anos, do Bento, que tem 19, e do Benedito, que tem 12. Moro em São Paulo e adoraria fazer cinema um dia!

Fotos: Carolina Vianna
Entrevista: Fernanda Meirelles

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