Michel Melamed

Michel Melamed é um artista brasileiro. Nasceu no Rio de Janeiro (RJ). Seu espetáculo “Monólogo Público” está em cartaz em São Paulo até 08 de maio.

Quando penso em você e nas obras com as quais você se envolve, penso em “linguagem”. Você se considera um pesquisador da linguagem?
Gostei dessa palavra que você usou, “pesquisador”. Vou passar a usar. Eu costumo dizer “experimentador” e está bem neste lugar mesmo. Então sim, me considero um “pesquisador”. É que o pesquisador já vem com uma certa autoridade e eu me sinto um pouco mais indefeso, muitas vezes por opção. Me sinto como alguém que arrisca, por isso não uso tanto “pesquisador”. Mas é isso, são experimentos: tento fazer o que não sei. É sempre meio neste lugar de desconforto… E no final tem um gozo, né? Uma alegria. Mas de maneira um pouco mais objetiva em relação à questão da linguagem, é uma das coisas pelas quais mais me interesso, é um dos pontos de partida para todos os trabalhos – também porque vejo como espectador, isto é, me interessa que as coisas não sejam persuasivas, que elas não só permitam múltiplas leituras, mas que estimulem as múltiplas leituras e, mais do que isso, estimulem leituras contraditórias – isso é o que me encanta como espectador de arte das mais diversas linguagens. São com estas contradições de sentimentos e emoções que consigo dar passos de interpretação e de criação com relação ao mundo. É quando consigo ver além das coisas cotidianas que, ao que me parece, majoritariamente são expressadas de maneira persuasiva nas mídias.

Tem uma frase da peça que coloquei no programa: “A disputa não é pela narrativa, mas pela linguagem”. Esta frase escrevi há uns meses e está rodando na minha cabeça. Ela tem milhões de leituras, mas lembrei de um exemplo para tentar ilustrar: há um tempo, teve a votação da PEC 241, que também era chamada de PEC da Morte, e eu estava assistindo ao noticiário de noite e passou uma matéria de dez minutos com quatro economistas falando… e todos eram a favor. Terminei de ver a matéria pensando “pô, genial, maravilhoso, tem que ter a PEC 241”, mas, como eu tenho instrumentos mínimos, dei dois passos para trás e percebi a linguagem: “e aí, mas como isso foi construído?” É um programa de televisão em que tudo foi transformado para que eu entendesse aquilo daquela maneira. E por que apresentaram assim? Então vi que eles construíram uma forma de expressar aquilo, que era persuasiva e conduzia as pessoas.

Quanto o universo artístico te interessa enquanto experimentação?
Me interessa completamente, porque eu quero me colocar em situações experimentais, de risco. Situações novas. Não acho que repito coisas, digo, é difícil falar isso, né? Tem coisas que se repetem. Inclusive este espetáculo tem elementos comuns aos outros monólogos. Pode, né? (risos) Eu tenho um campo de interesse de coisas que gosto, de maneiras de me expressar, ok, mas, para além disso, não crio uma situação de conforto para mim, de reprodução de algo. Não é neste lugar em que estou, não estou fazendo algo super comercial, que já tem um público. A linguagem é uma das ferramentas fundamentais que contribuem para que quem está assistindo possa criar. A ideia é criar!

O segundo conceito que remeto a você é o da estética. Quanto ela te influencia ou preocupa quando você está criando algo?
A imagem é fundamental, né? “O mais profundo é a pele.” Adoro esta frase. Tudo é a expressão de uma mesma coisa. É impressionante que isso não seja algo óbvio. A imagem não está dissociada do que aquilo é: é uma só coisa, tudo, em qualquer termo. As roupas que nós escolhemos para esse encontro hoje, elas estão dissociadas do quê?

É a mensagem também…
Não, não é mensagem! “Mensagem” faz parecer que há uma intenção primeira de alguém querendo comunicar alguma coisa, que aquilo é a mensagem. E se você não entendeu, a mensagem não chegou. A defesa que estou fazendo é a de que não há uma só mensagem – ou, pelo menos, deveriam ser mais valorizados os espaços onde não existe uma só mensagem!

Uma só mensagem é propaganda: “Compra meu leite, é o melhor.” Entendi: está dizendo que o leite melhor é o dele. Outra coisa é falar assim: “Olhe a vida, eu acordei hoje de manhã, a minha vida é boa ou ruim? Estou feliz ou triste? Vou sair pra trabalhar? Vamos fazer aquela entrevista? O que que vai acontecer?” Isso tudo depende da sua capacidade criativa, de você botar subjetividade naquilo e falar “tudo bem, estou meio cansado, só um pouco triste, mas olha aí, estamos vivos!”. Começar a inventar, criar coisas, e para isso precisamos de ferramentas, que, para mim, são o contato que você tem com as coisas criadas pelos outros, e não com o que é uma verdade universal: “o leite é bom.” Isso não me faz pensar em nada, a não ser que eu chegue com um repertório maravilhoso que me permita olhar para a propaganda do leite e falar “uau, o leite é neve!”.

…E pirar naquilo.
Exato, a gente brinca com qualquer coisa. Inventa o mundo numa cadeira de teatro.

Dizer algo no público ou no privado envolve intenções, estados, objetivos… É a representação do homem, mas também do ator, né?
É isso aí. Tem um sociólogo francês, o Bourdieu, que tem uma frase maravilhosa: “Uma boa referência para a sua saúde mental é o fluxo entre o que está dentro e o que está fora de você.” Pelos menos com relação às minhas experiências pessoais, as vezes que fiquei trancado na torre de marfim foram as que me ferraram mais, as mais infelizes. E ao contrário, quanto mais eu troco as pessoas, vou, me relaciono, namoro, saio com amigos, bebo, falo o meu medo e ouço o da pessoa, este trânsito entre o que está dentro e o que está fora me dá saúde.

Por outro lado, só pra exemplificar com imagens, este fluxo entre o dentro e o fora no país, que é o público e o privado, historicamente é uma vergonha, porque a relação do Estado com as empresas é isso e vemos até hoje o que vem desde a descoberta do Brasil. O Sérgio Buarque de Holanda já falava disso em “O Homem Cordial”, o Gilberto Freyre em “Sobrados e Mucambos”, esta superioridade do espaço privado sobre o espaço público. Quero dizer que não acho que é algo separado: o ator, o palco, quando está fora… Existe uma mistura grande, que não é necessariamente boa nem ruim. Como esses dois exemplos que dei.

Este aqui é o ofício da verdade, as pessoas sobem ao palco para dizer verdades. Qualquer termo que seja! Se você pegar uma peça de Shakespeare, tem verdades sendo ditas. Quem está mentindo é o atual presidente. Ele mente. Ele não é um ator, está mentindo e fingindo. Ele sabe de tudo o que acontece, está cercado por um bando de ladrões. Vejo muitos espetáculos em que a verdade está explícita, e vejo na suposta realidade um jogo de máscaras. E não sei se isso pertence ao palco ou ao lugar em que ele está. Este é o tema do espetáculo, o palco.

Na sua opinião, como a gente cultiva a poesia no trabalho do ator?
Acho que não é circunscrita ao ator, a poesia.

Com certeza, mas no trabalho do ator especificamente. Para pagar as contas, por exemplo, você pode aceitar estar em projetos que não condizem com o que você acredita.
Pagar as minhas contas condiz com o que acredito! (risos) Acho que a poesia é fundamental para a vida. Quando ouço essa palavra, “poesia”, penso em “múltiplas leituras”. Poesia é você olhar para uma coisa e ver além. Então tem uma cadeira aí, mas eu, por exemplo, vejo velhinhos curvados quando olho para a cadeira…

Como você acha que é possível dialogar com a pessoa que não vai ao teatro? Que não te segue nas redes sociais? E que tira suas conclusões pelas notícias da televisão? Você acha que a gente tem que estar na rua ou temos que ir até onde elas estão?
Se estamos falando de pessoas que não são radicais e têm porosidade, acho que para explorar isso é preciso ser capaz de se relacionar com essa monocultura sob a perspectiva dessas pessoas, não restringi-las e achar que “essa pessoa só vê isso”, porque aí você não está a fim de falar com ela, né? Talvez ela tenha e seja mais… e é. Mas não sei, são desafios essas aproximações. São tentativas. Hoje em dia, ir para rua é manter o fluxo de troca aceso, escrevi este espetáculo e botei na rua. Tem os ingressos, claro, mas tem as promoções, tem mil coisas, e as pessoas chegam. E estar na rua é tudo, não é apenas manifestação, é ter contato com as pessoas que estão ao seu redor. É também estar na internet, porque ela é uma conexão direta com as pessoas de vários lugares. Então estar na rua é estar para jogo, né?

Mas vale um asterisco: o “estar na rua”, na rua mesmo, merece uma atenção, porque é de novo uma das questões centrais do Brasil, isso do espaço público dominado pelo privado. As cidades não são feitas para as pessoas como ponto de encontro e é uma loucura! Porque deveria ser o oposto, elas deveriam justamente ser tomadas pelas pessoas, pelas trocas, a riqueza é maior onde as diferenças se encontram! E este espaço deve ser batalhado porque o poder oficial, consciente disso, vai tentando destruí-lo. Veja aí o Dória, pintando tudo de cinza. É para isso, para desarticular o encontro.

Você está em todos os lugares: no texto, no palco, na câmera, nas ideias, no microfone… Como você organiza estas vontades artísticas na sua cabeça?
Não vejo separação. Realmente não vejo. É curioso, às vezes fico meio ressentido quando falo isso, me parece que estou destituindo um pouco a minha capacidade técnica. Porque tem uma diferença técnica. Estou fazendo televisão e preparando agora a terceira temporada do “Bipolar Show”. Tem a decisão das câmeras, tem uma série de coisas que são técnicas. Tudo isso é importante e está inserido num contexto maior, que é o da criação artística, e isso ultrapassa as fronteiras todas. Tudo está no mesmo lugar, que é o desejo de se transformar, de transformar o outro. Às vezes, você se mete num trabalho que acha que não tem capacidade de realizar e fica com medo, aí tem que lidar com isso. Mas se eu estou assim, é bom, porque está arriscado, estou envolvido, está me mexendo, e tenho que me transformar para dar conta.

Sua procura é estar sempre neste estado, né?
A busca é esse lugar… Mas é natural, acho estranho, não entendo alguém cristalizar. Não entendo. Por exemplo, vou fazer um personagem na obra de alguém. Como é isso? Como é que você faz, como começa? É impossível, é difícil, tem um corpo, tem uma voz? Alguém vai me ajudar, vou ter que fazer tudo sozinho? O tempo está passando… Vou ter que pesquisar? Como? É uma pesquisa subjetiva? Vou ver filmes, ler, pensar, escrever, dançar? É um negócio imenso! Me perguntaram numa entrevista se existia para mim um peso maior em fazer um personagem de uma obra clássica e falei que não. É o mesmo lugar de fazer este espetáculo. Estou mais ou menos envolvido ou representa mais ou menos risco estar numa obra literária para televisão do que num espetáculo? Depende de quem está fazendo. Quem escreve um poema de qualquer jeito fará tudo de qualquer jeito, não é intrínseco da linguagem. O seu envolvimento vem de você! É o seu desejo de fazer, criar, de viver!

Como é que você escreve um poema? Para mim, fazer isso talvez seja tão porrada – ou mais – do que entrar num teatro com 300 pessoas na sua frente. Porque você chega em casa e já foi difícil para caralho criar condição interna e externa de sentar e falar “agora vou escrever”. Aí você tem que procurar uma coisa ali, tem que achar algo. Precisa ser real. Real no sentido de tentar fazer alguma coisa.

Tem algum projeto de TV que você teria vontade de trazer para o palco e algum de palco que você teria vontade de adaptar para a televisão?
Eu não vejo diferença entre um e outro! Para mim, estou fazendo tudo isso. Eu acho que este espetáculo é um programa de televisão, acho que é um filme. O “Bipolar” para mim é teatro, performance… Eu acho, por que não seria?

Como atriz em formação, te digo que nos apresentam linguagens que não são homogêneas. Você estuda interpretação para essa ou aquela linguagem, ou é épico, ou clássico, ou para câmera… Não somos “treinados”, a princípio, para ver que é tudo uma coisa só.
Mas talvez não seja. Essa é uma opinião minha. O Abujamra falava isso: “Só pode comer com as mãos quem sabe usar todos os talheres.” E parte da formação é isso, você primeiro se forma, depois mistura tudo, joga fora e faz o que quiser. Vai ter algum tipo de organização sempre, mas isso não é a verdade. A verdade é algo que você tem que inventar. O “Bipolar” é um programa de televisão. Por exemplo, a última temporada tinha público. Era em um teatro, com dois atores ali. Tinha texto decorado e improviso. E aquilo foi registrado por câmeras. Por que não é teatro? Aconteceu lá, mas as câmeras registraram. Então não é teatro. Era performance? Artes plásticas? Posso citar 300 milhões de conexões com as coisas que estão acontecendo ali, então aquilo lá é tudo isso. E aí eu volto aqui, essa peça, é um monólogo… de um cara sozinho? Não, não existe ninguém que está sozinho, tem diálogo com a plateia, com a luz, etc… Então assim, isso aqui é teatro, mas tem elementos também da performance. Se filmassem, poderia ser um programa de TV. Tem este statement né, de falar “isto é isto”. Mas este espetáculo é um poema. Um poema fora da folha de papel.

Fotos: Carolina Vianna | Entrevista: Fernanda Meirelles

ABRIL DE 2017

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