Duda Brack (Porto Alegre, RS) é cantora, compositora e atriz.
Tem muita coisa acontecendo na sua vida no último ano… o que você considera que está rolando de mais incrível na sua vida agora?
Acho que a novela (“Além da Ilusão”, da Globo) foi um presente muito simbólico, porque era algo que sempre quis fazer. Se eu for rememorar as minhas primeiras brincadeiras de infância, elas eram muito mais associadas com interpretação, tinham personagens… O cantar e a música vieram para mim bem depois. Eu descobri que cantava bem aos 11 ou 12 anos e aí, devagarzinho, fui começando a me soltar. Só quando fiz 15 anos que assumi realmente que eu gostava de cantar e iria me jogar. Aí comecei a cantar em bares, festas de casamento, formaturas… Inclusive, acho que não vivi boa parte da minha adolescência tradicional, como a maioria das pessoas, que fica mais ocupada com “sexo, drogas e rock’n’roll” (risos), porque eu estava imersa em fazer música.
E eu ainda tinha uma ideia de que havia começado muito tarde, que a maioria das cantoras começam aos 2 anos de idade, que têm família de músicos… eu achava que estava chegando depois no rolê. Eu tinha uma urgência, uma vontade de devorar isso profundamente, então… E também sempre tive vontade de atuar, mas, como a música foi rolando, deixei de lado e não corri muito atrás de realizar.
Em 2017, comecei a trabalhar com o [Sérgio] Penna e, apesar dos pesares, ali foi um ambiente que me ensinou muito, em que conheci muita gente e tive trocas artísticas incríveis. Foi quando comecei a me investigar como atriz. Naquela época, começaram a surgir convites e testes. Em 2019, um pesquisador de elenco da Globo me chamou para fazer um cadastro lá, fiz e entramos na pandemia. Aí, quando o convite pra novela chegou, foi quase como um presente pelos dez anos que estou na batalha pela música, pela minha criança interior… Foi a coisa certa na hora certa. Conheci pessoas que vou levar pra vida, fiz amigos incríveis e tive um reconhecimento diferente, mais pela expansão, porque meu trabalho chegou a pessoas as quais o meu trabalho com a música não chega. Foi um negócio muito especial.
Você ainda está se sentindo muito órfã do processo, do ritmo das gravações, ou já guardou no coração e bola pra frente?
A gente teve um encontro na última semana de gravação, com a preparadora da novela e parte do elenco. Nesse dia, senti que eu precisava deixar ir embora com a mesma fluidez e leveza com a qual chegou. O que está sendo mais difícil é essa readaptação do tempo, de uma rotina, do financeiro e do modus operandi… porque música e dramaturgia são coisas complementares, mas muito diferentes. Para o meu negócio na música andar, preciso me envolver com tudo. Preciso ser a ponta da lança e puxar e liderar a equipe, escolher o que vai ser feito e como, quando vai ser feito, administrar. É uma outra energia vital muito maior do que rola na dramaturgia, em que toda a energia você canaliza para a sua parte, é muito segmentado. E isso é legal, os dois são legais. Quando eu chego para fazer dramaturgia, já tenho uma noção de direção, venho com adicionais que talvez os outros atores não tenham ainda. E tem o lance de me virar, ter jogo de cintura, uma coisa colabora com a outra. No mundo ideal é isso o que eu quero, viver intercalando as coisas… Porque cantar já é um lugar de muita plenitude pra mim, por mais que tenha todas as questões de mercado, as dificuldades, cursos, fazer arte no Brasil, cultura… Sei o poder que eu tenho quando eu subo num palco… [Emociona-se] Fico até emocionada porque isso é maior, é o que ninguém vai me tirar. E acho que eu tenho esse caminho a ser construído na dramaturgia. Eu já canto há muito tempo, então já tenho lugar de plenitude como cantora, que eu não preciso ter medo, vergonha ou falsa modéstia de falar “porra, eu sou uma das grandes cantoras da minha geração, sim”. E isso é maneiro, você se apropriar desse poder. Porque tudo que a gente tem de potência é um poder, né? Mas ele também é só um fator para chegar no outro, pra poder mover coisas no outro e gerar essa comunhão que é o que acontece quando rola um show.
Pensando no prático, nisso de fazer as duas coisas, no dia a dia, tocar projetos e tudo mais, você acha que facilita, que é bom para você navegar por todas estas linguagens, ou isso torna as coisas mais complexas, demanda mais organização, planejamento…
Os dois! Pelo lado criativo é maravilhoso, porque eu acho que todas as coisas estão a serviço de transmitir uma ideia, uma emoção… a canção é veículo para isso, o figurino é veículo para isso, o clipe, a direção, o roteiro, a ordem, a música, a estética, o arranjo… E aí acho que o trabalho de ator é parecido nesse sentido, mas dentro de suas especificidades, na composição do seu tecido de referências, na composição do personagem… É criatividade! Uma coisa potencializa a outra. Na prática, também atrapalha – porque você tem que dar conta de mais áreas. Por isso é importante conseguir formar uma equipe para que você possa delegar coisas, co-criar… só que isso, bom, pra mim, que sou virginiana suuuper perfeccionista, não é tão fácil – e também demanda de um outro status financeiro, que às vezes a gente tem e o projeto pode contemplar todos os setores, às vezes não, e você vai ter que fazer porque não tem grana pra contratar alguém que faça.
Nesse momento, fazer já é um baita privilégio…
Exato! E, no final das contas, acho que é onde eu me realizo e meu grande privilégio de pensar que, bem ou mal, estou aí sobrevivendo, levando minha vida, ganhando o meu pão em cima do que eu acredito, que é a minha missão de alma e o que mais me dá prazer de fazer na vida. Eu acho que a arte nos dá mais clareza e consciência sobre os nossos caminhos, também pra curar toda uma árvore genealógica da nossa existência, sabe? Fico pensando que estou quase que redimindo o meu pai, que a vida inteira trabalhou com o que não queria porque só olhou pra grana e não se permitiu fazer o que amava.
Que lindo. Isso é bem legal. Acho muito foda, até porque pra eles – vejo pelos meus pais também – tinha toda uma prioridade na busca por estabilidade, que vinha muito na frente do tesão, do amor pelo ofício. Poder ser artista hoje no Brasil e ganhar o seu pão com isso é massa né, é foda. Um privilégio, mesmo.
Exato. Mas eu acho que a gente precisa, pelo menos, tentar construir um cenário fortalecido a ponto de que não tenha que ser uma coisa ou outra. “Ah, a prioridade é fazer arte, então estou condenada a não ter estabilidade financeira.” Não pode mais ser assim. O direito autoral é uma das coisas que mais dão dinheiro nos Estados Unidos, por que no Brasil a gente não consegue organizar um mercado a ponto de termos a estrutura que merecemos? Porque a cultura dá dinheiro, sim! Entretenimento dá dinheiro, sim!
Duda, as pessoas se referem a você em matérias, reportagens, usando muito as mesmas palavras, “visceralidade”, “intensidade”… Queria saber se isso é proposital na sua construção artística ou se é algo que você foi vendo chegar e percebeu que era muito inerente a você.
Todo final de ano a minha escola tinha uma apresentação das turmas com tema, coreografias, figurino. Tem uma foto em que eu estou em uma dessas apresentações, na segunda série, já soltando a franga (risos). Meus colegas todos riram da minha cara, mas a professora achou o máximo e falou “você vai pra frente no dia e vai fazer o seu número”! Acho que ali talvez foi o primeiro impulso que eu tive de uma manifestação artística e faz sentido isso… é da minha personalidade, mesmo. Não nasci pra ser uma cantora culta e cool. (Risos) Com todo o respeito às cantoras cultas! Tenho várias divas que amo, mas este é o meu barato, sei lá, não é premeditado, mas é o que me escapa e é o que gosto, então tiro proveito disso!
Falando sobre imagem e estética: como você busca aliá-las aos seus figurinos, na construção do que você faz?
Meu avô era arquiteto, minha mãe estudou arquitetura e design, trabalhou anos no escritório dele… Depois minha irmã estudou arquitetura e design, ambas trabalharam com figurino e direção de arte e hoje temos um coletivo de criação e elas colaboram com os meus projetos, mas também trabalham com outros artistas… Então eu acho que por vivência, no ambiente onde cresci, fui muito educada a ter esse olhar estético e visual para as coisas, aprendi a traduzir ideias e sentimentos em imagens, via a minha mãe construir os projetos, executá-los dentro de casa. Elas sempre tiveram esse olhar muito forte para moda e eu acho que fui por osmose pegando um pouco disso. Tenho um olhar contemplativo para as coisas que acho bonitas e aprendi muito a olhar as coisas assim com elas. Gosto muito da simbiose da imagem com o som.
Você está rodeada de pessoas incríveis, trabalha com artistas absurdos… como você constrói essas relações? O que é mais importante para você nelas?
A maioria das minhas relações aconteceu. O Charles [Gavin] me chamou por uma indicação, ele não me conhecia, estava querendo montar um projeto com o repertório do Secos e Molhados, pediu indicação para o Felipe Abreu, que é irmão da Fernanda Abreu e que já tinha me dado aula há tempos, quando eu tinha 17, 18 anos. Desde então ele acompanha o meu trabalho, é um amigo presente na minha vida, e aí, quando o Charles pediu indicação, ele me indicou. Eu topei e nunca imaginei que viraria um disco – a princípio era só para ser um show, nunca imaginei que o Ney Matogrosso iria ver, gostar e resolver acolher, me apadrinhando… Assim como eu nunca achei que iria chegar a uma novela e a minha dupla de cena ser a Marisa Orth, que eu cresci vendo na TV! Eu realmente acho que aquilo que cruza o seu caminho de uma forma muito forte diz muito sobre você. E aí, sei lá, é claro que eu fiquei morrendo de medo de fazer o show do Secos e Molhados, é uma responsabilidade, podia dar muito errado. Mas nesse sentido eu peco pelo excesso de coragem. Topo e depois vejo como é que vou fazer pra dar conta. (Risos) Acho que isso sempre me rende bons frutos, porque me bota em movimento e os caminhos vão se abrindo. Sou muito abençoada, muito artista aparece no meu caminho e me abraça, me ancora, me dá subsídio, caminha ao meu lado.
Momento esquisito pra se viver sendo brasileira, estamos entrando em outubro e não sabemos o que vai acontecer… Com a relação a arte, sei que essa resposta pode ser meio óbvia, mas queria te ouvir. O que mais te aflige hoje enquanto artista e o que mais te excita? Qual é a sua maior dor e a maior delícia hoje?
De uma forma ampla, o que mais me excita é que a arte me dá um lugar de pertencimento. E isso é maior e independe de qualquer contexto sociopolítico/econômico. Mesmo que a coisa não seja favorável, mesmo que em algum momento eu precise trabalhar com outro ofício para sobreviver, mesmo que eu precise algum dia ir embora do Brasil – o que não vai acontecer, tenho certeza de que Bolsonaro não vai ser reeleito, mas… mesmo que alguma coisa esteja muito “não-favorável”, o lugar que a arte me dá é pessoal e intransferível neste mundo e comigo mesma. Nada vai afetar. Claro, eu adoraria estar com uma agenda de cinco shows lotados por mês, adoraria estar ocupando espaços que ainda não ocupo… e aí acho que a gente vive hoje uma problemática – talvez a minha maior dor seja essa -, que tem a ver com o contexto político, com a falta de oportunidades, de investimento público, com o boicote à classe artística que a gente vive no governo de hoje. Mas acho que não é só isso. A gente vive uma pressão que é da indústria, de mostrar muito uma coisa em detrimento de várias outras. É um momento de mercado: se você não é filho de ninguém, se não tem muita grana pra colocar em marketing digital, vai ser difícil seu rolê virar, sabe? Acho que esse é o maior conflito que tenho hoje, de entender que essas são as cartas dadas e tenho que jogar bem jogado o que eu tenho pra jogar. Essas coisas dificultam a fluidez, porque eu gostaria de estar fazendo muito mais, em quantidade, do que eu faço. Acredito que, em relação a entrega e qualidade, eu tenho muito orgulho do que entrego, mas se eu tivesse mais suporte financeiro, entregaria mais e ainda melhor.
Mas mesmo assim ainda estou aqui respirando, fazendo arte, porque isso é um lugar muito substancial meu que eu conquistei e que vai estar comigo sempre, no que eu fizer e no que puder fazer. É um prazer, principalmente quando se realiza de forma completa, por exemplo no show que fiz semana passada em Ribeirão Preto, o teatro lotou, uma casa para mil pessoas, uma arquitetura linda, plateia quente, vibrando… Sei que tinha muita gente que foi lá pra ver o Ney [Matogrosso] e me conheceu naquele dia, muita gente que já me conhecia de 2013, quando eu participei do Festival de Canção e ganhei em primeiro lugar, eu sei que tinha gente que me conhecia da novela, gente que me conheceu no meu primeiro disco ou no segundo… tinha de tudo! Mas a plateia em peso estava muito conectada comigo, sabe? Senti que as pessoas saíram de lá vibrando. Este show justifica todos os outros que deram errado, todas as coisas que tentei empreender e não consegui.
Parabéns pela jornada, pelo trabalho que você tem feito, por resistir e fazer… Quantas e quantas pessoas não gostariam de ter a oportunidade de viver disso e param pelo caminho por encontrarem infinitas dificuldades.
Pois é. Eu também dou aula de canto, por exemplo… é uma renda complementar, graças a Deus é algo que eu gosto de fazer, que eu domino, tenho muito prazer em ajudar as pessoas a se desenvolverem. Não é o que me realiza, como estar no palco, atuação e etc, mas eu gosto muito de fazer, me sinto digna… E é isso, realmente a gente precisa equilibrar trinta pratinhos ao mesmo tempo, mas é muito o que a Fernanda Montenegro diz, você tem que amar muito mesmo, tem que quase não suportar a ideia de não fazer isso. Porque a ideia de não fazer tem que ser mais insuportável do que toda a “insuportabilidade” das coisas nas quais você queria chegar e não consegue, sabe? Das coisas que ficam dando errado… Realmente é isso. É pecar pelo excesso de coragem.
Entrevista: Fernanda Meirelles
Fotos: Carolina Vianna
Beleza: Rafaella Crepaldi
Styling: Leila Pigatto
OUTUBRO DE 2022