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Pedro Gabriel

Pedro Gabriel, escritor, publicitário e criador do projeto Eu me chamo Antônio, nasceu no Chade, na África.

Não consigo encontrar na memória desde quando sigo o seu trabalho. Faz tempo! O projeto nasceu em 2012, certo?

Isso! O primeiro livro foi publicado em 2013, mas desde 2012 eu já postava os guardanapos, ainda que de forma muito tímida na internet. Em 2014 publiquei o segundo e, em 2016, o terceiro, que é o mais recente. O meu guardanapo, na verdade, nasceu fora da internet: foi no balcão do bar que eu frequentava no Rio de Janeiro quando morava lá, onde eu parava para tomar um chopp, conversar com os amigos… Ali que produzo os guardanapos.

A ideia foi totalmente despretensiosa?

Totalmente. Sempre gostei de anotar coisas em guardanapos e em papéis: a minha cabeça não para de pensar, de ter ideias, só depois vou ver se são boas ou não. Tenho o hábito de sempre anotar tudo, ando com um caderno de bolso. Um dia, quando ainda trabalhava como redator, estava voltando do trabalho e tinha esquecido o caderno. Tinha várias ideias na cabeça, aí parei no ponto de ônibus e, em frente, estava o Café Lamas, onde desenho todos os guardanapos até hoje, e o único papel disponível para mim no momento era aquele no balcão. Desenhei as ideias, anotei algumas e guardei dentro de um livro, que, aliás, era um que tinha acabado de sair, o “Toda Poesia”, do Paulo Leminski. Este livro foi importante, me marcou muito, foi a primeira vez que vi um livro de poesia disputando os mais vendidos com literatura internacional! Vi que um verso curto e uma brincadeira gráfica também tinham o seu lugar comercialmente falando. Acho que aí muitos poetas e escritores que surgiram nas redes sociais ganharam confiança para mostrar seus trabalhos e publicar livros. Começamos a ver uma leva de poesia digital, de internet, que é uma literatura muito do nosso tempo.

A Rupi Kaur é gigantesca hoje, né. E tem muitas páginas grandes no Brasil também!

Sim! Tem uma brasileira, a Ryane Leão, que lançou “Tudo Nela Brilha e Queima”, ela é incrível e muito importante, porque, como a Ryane mesmo fala: “Eu sou negra, sou lésbica e sou mulher no Brasil – e faço poesia.” Tudo para a sociedade não querer que dê certo, né? E ela conseguiu ser publicada por uma grande editora. Tem também a Clarice Freire, do Pó de Lua, ela é de Recife! A internet quebra um pouco essa noção de fronteira geográfica e cultural, não tem mais aquilo de publicar alguém que é bonito ou seu amigo, a literatura está se democratizando e, se não fosse a internet, tenho certeza de que meus livros não teriam acontecido. Eu não tinha nenhuma relação direta com o mercado editorial, não conhecia ninguém naquela época.

Hoje você consegue viver disso?

Sim. Não diretamente do livro, mas de tudo que o “Eu me chamo Antônio” me permite. Por exemplo, sou convidado para feiras literárias, oficinas, palestras em empresas… O que mais gosto de fazer é visitar escolas e saber que os professores estão usando o meu livro! E eles usam porque é uma poesia, digamos assim, carismática, todo mundo consegue entender pelo menos o primeiro sentido, independentemente da idade, classe social ou onde você mora, e a partir disso cada um interpreta como quiser o guardanapo. Uma vez, dei uma oficina em São Bernardo do Campo, em uma escola para crianças de quatro e cinco anos que ainda estavam começando a entender algumas letras, mas a vantagem do meu trabalho é que ele associa muito palavra e imagem, sabe? Então até para quem não sabe ler funciona. Quando o público é muito novo, levo filtros de café no lugar dos guardanapos, aí rasgam com menos facilidade. (Risos) Eu gosto de ter um contato mais aberto e não coloco a poesia em um pedestal muito alto – não por falta de respeito, pelo contrário, mas por respeitar as crianças. Elas podem ter um contato mais bonito com a palavra e com o desenho.

O que você responde hoje quando te perguntam qual é a sua profissão?

Naquela fichinha de hotel? (Risos) Sou formado em Publicidade e me identificava muito com a redação publicitária, mas hoje tenho colocado escritor. Uma vez, fizeram um texto sobre o meu primeiro livro e me perguntaram como eu me definiria. Falei “desenhador de de palavras”. Depois descobri que um autor de quem gosto tem um texto que se chama assim, o Mia Couto! Tenho oito ou nove livros dele em casa e, também por ele ser de Moçambique, acaba tendo esse negócio da África, onde nasci. Cada vez que eu leio autores de lá – que fazem referência de alguma forma ao continente – o meu cérebro automaticamente me leva para a minha infância.

O seu pai não é brasileiro, certo?

Isso, a minha mãe é, mas meu pai é suíco. Nasci no Chade, uma antiga colônia francesa bem no meio da África, eu e minhas irmãs, e morei lá até os cinco anos. Aí passei um ano no Brasil e voltamos para a África, mas para Cabo Verde. A gente se manteve no ensino francês.

A sua mãe falava francês com você?

Sim, meu pai e minha mãe. E não era a língua materna de nenhum deles! Meu pai era da parte alemã da Suíça, então teoricamente a gente deveria falar em casa português e alemão! Mas isso tem uma razão: minha mãe foi estudar na França e conheceu o meu pai lá – e eles se falavam em francês! Então em casa todo mundo era meio estrangeiro.

Acho bonito e doido que, talvez por isso, o seu grande universo sejam as palavras em português, que não é a sua língua materna. Você ainda fala francês?

Pois é! E só a aprendi depois dos 12 anos. Sim, falo francês com o meu pai e até os 17 estudei em uma escola francesa no Rio. Quando me formei, não sabia muito o que queria fazer, mas na minha cabeça um publicitário conseguiria unir um pouco de tudo, cinema, história em quadrinhos, um pouco de palavras, marketing… Acho importante essa escolha de ter feito Publicidade, porque conheci muitas pessoas curiosas em várias áreas.

E hoje a língua portuguesa é o seu… vício, né!

Sim, o meu ganha-pão, e talvez seja o que você falou, o tempo longe do país da minha mãe fez com que eu me encantasse mais com a língua do que quem nasceu falando. Em Cabo Verde, eu tinha contato com o português de Portugal, com a sonoridade, mas no dia a dia eu não falava, e aqui fui me encontrando com as palavras, lembro que eu ficava prestando muita atenção nelas.

Você está na internet há muito tempo e, como quem também trabalha com isso, posso dizer que produzir conteúdo para internet em 2019 e 2012 são experiências muito diferentes. Você concorda?

Em 2012 não sentia essa velocidade e a necessidade de ter conteúdo sempre atual, todos os dias. Eu produzia num outro ritmo, ia no final de semana para o bar, fazia 10, 15 guardanapos e eles davam para vários dias de conteúdo. Hoje a internet te pressiona a sempre ter alguma coisa nova. Acho que a minha mudança para São Paulo serviu bastante para mudar a minha forma de encarar o trabalho. Não preciso ficar dependendo somente dos guardanapos. Claro que, se não fossem eles, hoje não conseguiria viver do que eu amo, que é desenhar e escrever, mas surgiram oportunidades por conta deles, como desdobrar algumas coisas em música, em quadros e textos maiores… Isso acaba atingindo outro público também!

Legal, porque você começou com um “produto” específico  e como continuar criando, sete anos depois, a mesma coisa? Tem que ramificar, né!

Sim. É difícil. Toda hora eu penso, “nossa, este vai ser o último guardanapo”. Mas fui entendendo que conseguia fazer outras coisas também. Sinto saudade dos guardanapos e quando vou visitar a minha mãe ou minha irmã no Rio consigo fazê-los com outra visão.

Você os faz no Rio de Janeiro?

Sim, só no Café Lamas. Hoje faço mais rápido e acho que o conteúdo está mais maduro, afinal, são mais de dois mil, a mão já sente mais confiança também! É legal. Algo que começou em um guardanapo, no balcão de um bar, depois de eu ter esquecido um caderno, resultou em várias possibilidades. E, assim, os meus desenhos não são aqueles desenhos fantásticos, acho que combinam com a linguagem que uso, de balcão de bar, meio rasura, meio rascunho – se fossem uma pintura calculada seria horrível.

E estes rascunhos são coisas que as pessoas também fazem nos guardanapos. Elas se identificam.

Sim! Mas para mim é a tela final. É claro que não fui eu que inventei isso, só que para as pessoas normalmente é uma ponte entre o rascunho e a obra, mas para mim já é tudo junto: a obra final, o digital, o online e o offline. E acho que o artista tem que traduzir um pouco do tempo em que vive: não que precise necessariamente ter um Instagram ou Facebook, mas fechar os olhos para isso e não ver a possibilidade de trocar ideias sem obstáculos… Isso é fantástico! Acho que a arte e a poesia, quando você as publica, representam um ponto de encontro entre a sua intenção e o olhar do leitor ou do ouvinte: não tenho total domínio sobre o que vão achar e eles sobre o que vou produzir, mas em algum momento os nossos olhares se encontram num ponto, que é um livro, um quadro, uma música. E, para mim, olhando assim, parece inacreditável, eu não sabia que poderia viver de livros. No Brasil ainda!

O Antônio é um personagem e é você ao mesmo tempo. Mas você consegue se distanciar dele? Transformá-lo em “algo”?

Consigo. Hoje consigo muito bem colocá-lo ali, no guardanapo. Acho que é um personagem, mas claro que em toda obra literária e em todo personagem há um pouco do autor ali. O Antônio está no guardanapo e o meu desafio é sair dele e mostrar outras coisas para não ficar toda hora batendo na mesma tecla. Acho que repetir o sucesso, para um artista, é fracasso, sabe? Ter que fazer só aquilo. Por mais que vá bem comercialmente, é brochante criativamente. Estou no ponto de conversar com a editora sobre o próximo livro, e o material que estou apresentando mantém o personagem Antônio, mas quero dar um outro desdobramento, brincar com transmídia, ter uma página sonora com QR code para ouvir o guardanapo, criar ambientes como uma continuação do livro. Vai ter uma história com palavras um pouco mais extensa. Apesar de que, tão difícil quanto escrever muito, é escrever pouco!

Você que o diga!

É preciso condensar ideias que todo mundo consiga entender e que apresentem vários sentidos. Nas escolas, costumo falar sobre simplicidade criativa: digo que tudo o que você precisa para fazer um guardanapo tem em casa e falo para os alunos como é importante usar a própria mão para fazer arte. A gente está na era em que todo mundo digita e é diferente você usar a sua mão para desenhar, para escrever com sua caligrafia. A nossa letra é a nossa personalidade. A tecnologia mais importante que a gente tem é a nossa capacidade de assimilar referências, de absorver conhecimentos, trocar ideias e criar um mundo que faça sentido pra gente.

Você tem uma relação muito forte com intuição? Como lida com isso?

Tenho uma gaveta cheia de cadernos e é como se fosse um Google analógico: vou anotando coisas, palavras e frases que me chamam a atenção em livros ou no jornal. Anoto tudo. E depois, com calma, vou revendo esses “frutos da intuição”… até que uma frase brota na minha cabeça. A intuição é também construída com base nas suas referências, em tudo o que você já viu, ouviu, nas conversas que teve com sua mãe, com seus amigos. Tudo fica em algum lugar na sua cabeça e aí basta uma palavra para desencadear várias ideias. Eu não censuro nada, nenhuma bobagem, e mesmo parecendo absurda eu anoto, porque pode ser útil em algum momento.  Acho que a cabeça de um cara que quer trabalhar com ideias criativas tem que ser aberta, não dá para ter preconceito com estilos musicais, por exemplo: uma música “ruim” pode te inspirar a fazer um verso. Sou muito curioso, muito, e acho que isso tem a ver com a educação que eu tive. Meu pai não trabalha com arte diretamente, mas sempre incentivou o desenho em casa, e a minha mãe é doutora na UFRJ. Basicamente aprendi sobre palavra com a minha mãe e sobre imagem com o meu pai!

Você acha que aprendeu a lidar melhor com os seus sentimentos depois que o Antônio passou a existir?

Sem dúvida alguma! Não sei se entra no campo da terapia, mas até 2011/2012 sempre tive muita dificuldade de falar sobre sentimentos, era uma pessoa muito calada, muito contida. Não que a gente deva falar tudo, mas este processo dos últimos cinco anos viajando o Brasil, encontrando pessoas e dando entrevistas foi me mostrando que dá para dividir o que a gente sente com as pessoas, você pode quebrar a timidez e permanecer inteiro. Cada guardanapo, de alguma forma, deu voz aos meus sentimentos, à minha personalidade. Desde 2012 eu venho vivendo um guardanapo por vez. (Risos) 

Fotos: Carolina Vianna | Entrevista: Fernanda Meirelles

FEVEREIRO DE 2019