SILVA, cantor, compositor, produtor e instrumentista, é de Vitória (ES).
Que lente você usa para ver tanta poesia no mundo?
Nossa, várias! Maconha, álcool… (risos) Não sei, acho que tudo, o meu trabalho é muito autobiográfico, apesar de as minhas letras não serem tipo as da Alanis Morissette, que contam todas aquelas histórias. As minhas são mais abstratas, mas, ao mesmo tempo, a vibe inteira condiz muito com o momento em que estou. Meus dois primeiros discos, “Claridão” e “Vista Pro Mar”, têm tudo a ver com a minha formação. Eu sou um cara de família protestante e a parte musical dela – são muitos músicos – é toda da área erudita. Então tem essa formação mais séria.
E você veio dessa formação também!
Vim! Sou formado em violino clássico. Mas eu sempre fui muito questionador em casa, a minha mãe é professora da UFES, ela sempre deu aulas de flauta e agora tem um projeto de educação musical para idosos, que é muito legal. Está colecionando umas histórias incríveis! Então é isso, eu cresci nessa casa e fui muito incentivado a me aproximar da música. Mas era uma música bem dentro do padrão e eu tive que quebrar muitas barreiras. Fui morar fora com 20 anos, fiquei quase dois anos na Irlanda, nunca tinha tido experiência com drogas… Lá tive as primeiras, drogas mesmo. Falar sobre drogas é muito tabu, né! Nunca tinha experimentado LSD e maconha mesmo acho que tinha fumado com 17 anos, uma vez na vida… Penso que os artistas deveriam ter mais coragem de falar sobre isso, porque a gente vive uma hipocrisia grande com relação às drogas. Não é uma coisa que faz parte do meu dia a dia, mas eu sei quão importante é para as pessoas que trabalham com criatividade: ela abre algumas coisas, então acho que maconha, para mim, é algo importantíssimo! (risos) Tem momentos em que você está numa correria, aí simplesmente fuma um beck e fica “uau”, acessa um monte de ideias incríveis…
Funciona como um gatilho para você chegar a outros lugares.
Funciona! Eu não gosto de ficar refém disso, então não tenho necessidade de fumar todos os dias, mas as minhas “lentes”, como você perguntou, passam por todas essas coisas: a minha história de vida, os meus amigos – que são muito importantes, muito. Eu sou um cara bem sociável, adoro conversar, conhecer gente nova, mas as pessoas que realmente convivem comigo são poucas, eu gosto de ter qualidade no contato.
Você tem música na sua vida desde bebê, certo? Você cresceu se vendo como músico ou essa chave demorou para virar?
Então, eu tive momentos. Em alguns eu realmente me achava “o músico”. Eu tinha muita facilidade, tenho ouvido absoluto, tenho essa sorte – que nem sempre é uma sorte -, mas eu era aquela criança que aprendia um violino muito rápido. Na escola, fui medíocre em várias coisas, tipo matemática, mas com música… Era uma linguagem que para mim fazia sentido, então eu aprendia depressa e era exibido, com 10 anos já adorava palcos, adorava aparecer, era metidinho! Depois fui ficando tímido, não sei bem a razão, mas acho que foram várias, a sexualidade entrou no negócio também, isso de ter uma família muito tradicional, aí começaram os meus conflitos sexuais e fui travando. A minha autoestima ficou péssima. Eu tinha esses momentos de querer ser músico, mas sempre tem alguém na família que fica “porra, não faça Música, faça Direito, porque Direito te dá uma possibilidade de trabalho, uma estabilidade financeira”, e eu tive essa fase “vestibular”, em que pensei em fazer outra coisa. Pensei até em fazer Jornalismo, achei que gostaria de escrever sobre música.
Mas você acabaria voltando…
Sim, não ia dar jeito! Aí foi nessa que fui morar fora, estava perdido, já tinha entrado na faculdade, estava no Bacharelado de Violino, só que ainda não estava batendo. Só quando fui morar fora que falei “cara, música é a minha vida, mesmo”.
Você tocou na rua, né?
Toquei, e a música me salvou, porque estava lá no auge da crise econômica, então não conseguia emprego nem em cafeterias. Paguei o meu aluguel tocando na rua, foi uma experiência muito enriquecedora.
Onde você está morando agora?
Em Vitória ainda! Eu ia me mudar para São Paulo, já tinha me programado, escolhido apartamento, mas acho que não é a hora ainda, apesar de eu querer e achar que vai ser bom para mim estar em São Paulo. Tem pessoas da música que, quando me conhecem direito, dizem “pô, achava que você era mais fechado, meio antipático” e eu falo “não é isso, é porque eu não moro aqui!”. (risos) Não sou um cara recluso, eu adoro sair, sou super festeiro, mas o lance é não estar onde as coisas realmente acontecem. Mas acho isso bom também, me deixa protegido de algumas coisas. Enfim. Não quis mudar. E agora o Lulu [Santos] acabou de me chamar para produzir o disco novo dele, com músicas da Rita Lee, que é a maior responsa…
É muito foda, no caso!
Muito! Eu adoro ser produtor, é uma coisa que me dá bastante prazer. Em alguns momentos, para falar a verdade, dá mais do que ser cantor, porque você está pegando uma coisa e dando uma cara a ela. Resolvi ficar em Vitória por enquanto porque lá tenho o meu estúdio, que não é grande coisa, mas é um estúdio em casa, com o qual já estou acostumado, tem o meu piano, minhas coisas espalhadas. E lidar com mudança no meio disso… Não quis. Tem a turnê agora com [o novo álbum, com versões de músicas da] Marisa Monte e eu não quero parar de compor, quero voltar, porque estou há 6 meses sem compor nada, está na hora.
Você gosta de estar em turnê?
Eu amo! Tem as partes chatas, tipo o deslocamento. Viajar é uma coisa muito cansativa, fazer malas… Acho que sou um fazedor de malas e cantor nas horas vagas!
Uma hora cantando para cinco fazendo malas!
(risos) Exatamente! Você tem que estar com a cabeça muito boa para fazer aquela uma hora valer a pena. Não só pelo público que está te vendo, mas também por você.
São muitos momentos solitários, né? Em que você precisa lidar com a própria companhia.
Muitos. E no começo isso era horrível para mim, eu ficava super incomodado, ligava esses aplicativos de relacionamento – e nem era para conhecer ninguém, era só pra trocar papo, uma coisa meio deprê. Queria conversar com alguém, não conseguia ficar sozinho, não conseguia ler, ficar no hotel tranquilo… Estou fazendo terapia há quatro anos e tem sido incrível para mim. Eu era muito fechado, tinha vergonha de me expor, sabe? Tinha uma autocrítica grande e isso me travava demais – até no palco! Hoje eu chego pensando “cara, eu sou esse aqui, não posso ser outra pessoa, certo?” Isso me deixa mais livre no palco.
E você está vendo que funciona muito bem ser quem você é!
Funciona! Mas sem forçar a barra também: eu não queria entrar num curso de teatro e decidir que “agora vou ser um cara performático”, porque não sou esse cara na vida – e admiro quem é. Tipo a Ivete [Sangalo]. Ela tem um talento que é extraterrestre, você pode não gostar da música dela, mas é fato que aquela mulher é uma entertainer, o que ela pega para fazer vai te convencer. Eu não tenho esse talento, mas acho que são coisas que você pode ir aprendendo e melhorando para estar mais à vontade com o público e com você mesmo.
Procurei entrevistas do seu começo de carreira e em várias li referências a você usando a palavra “originalidade”. No álbum das versões da Marisa, por exemplo, você dá uma cara nova a músicas que ama. Queria saber como lida com esse conceito da originalidade no seu fazer musical.
Eu sempre bati nessa tecla, acho que originalidade é um termo meio pretensioso de se usar, “sou original”, mas acredito que a busca por isso é bem válida. Eu sou muito fã da Elis, muito, e tive um momento da vida de ser obcecado por ela, passava madrugadas no YouTube vendo vídeos e ela tinha umas respostas que eu achava incríveis, com as quais eu super concordava, como “eu só quero ser eu mesma!”, ela falava isso muito, de várias formas. E é uma coisa tão difícil porque estamos num mundo, ainda mais hoje, que molda tanto a gente, é tanta coisa acontecendo, tanta informação! Essa sempre foi uma questão que me preocupou.
Me perguntam muito “por que Marisa?”. Porque eu sou fã dela, a acho uma artista foda, fora do comum, uma cantora excepcional, mas também acho que é uma questão de posicionamento. Na MPB hoje, quando querem ser originais e desbravar uma coisa nova, vão lá para os Mutantes. “Vou fazer um disco que vai quebrar tudo” Aí pegam uma guitarra com fuzz e botam no meio daquele arranjo, achando que estão fazendo a coisa mais louca do mundo, mas, cara, isso já aconteceu com Mutantes, com a Tropicália, é uma releitura de algo que já foi feito. Eu acho muito importante que todo mundo que trabalha com criatividade e arte em geral se ligue na contemporaneidade da coisa. É esse o momento que estamos vivendo hoje em termos de tecnologia, política e economia e é uma coisa que só vai acontecer agora. Claro que referência é muito legal, eu uso sempre referências nos meus trabalhos.
Sou um cara que veio dessa formação erudita, então chegava na aula de Análise Musical e meus amigos todos falavam sobre Mozart, Beethoven, Chopin, Rachmaninoff, e eu sempre questionava e dizia “gente, a música eletrônica que temos hoje veio dos eruditos, e não da galera que não tinha grana e estava na indústria batendo num negócio quando simplesmente saiu um som. Eram experimentos dificílimos naquela época, anos 60 em Londres, os caras tinham uns equipamentos bizarros para fazer um “tum”, que era um som eletrônico. Rolou um avanço tecnológico gigante, os equipamentos começaram a ter mais capacidade e as pessoas têm isso de falar que se é eletrônico e tecnológico não vão usar, porque “isso é ruim, não é humano, não é orgânico”. Detesto essa palavra, “orgânico”! Cara, o que é orgânico afinal? No fim, você vai passar o seu disco por uma fita, você vai masterizar aquilo.
Eu busco muito essa coisa, é um jogo e você tem que ficar atento, porque, ao mesmo tempo, os meus artistas brasileiros prediletos estão lá atrás, não estão aqui na frente. O João Gilberto acho que é um dos caras que eu mais amo no planeta, João Donato, Jorge Ben… Poxa, Jorge Ben, bicho. Tão original! E continua sendo!
Sempre fresco, né?
Não se parece com nada! Eu abri uma playlist aqui de uns caras do The Roots e, no meio de um monte de coisa, lá estava ele, sempre o Jorge Ben, é um cara que faz sentido sempre, sabe? Numa playlist japonesa ele vai fazer sentido. (risos) É muito original. E essa é uma ambição que tenho como artista. Tem gente que pode querer tocar para 50 mil pessoas, aparecer na TV o tempo inteiro, ser paparicado, ter zilhões de seguidores… Tudo bem cultivar essa ambição e eu respeito – só precisa ter estômago também, porque provavelmente vai ter muita gente te enchendo o saco. Mas a minha vontade é essa, fazer uma música que seja interessante e que fique de alguma forma. Porque as coisas são tão efêmeras, estão passando tão rápido. Se eu lanço um disco, daqui a seis meses ele já está velho.
Qual é a sua emoção favorita de cantar ou escrever sobre?
Gosto muito da sensação quando você ouve uma coisa que não é nem triste, nem alegre. Adoro quando o humor da música que você está ouvindo é completamente misturado, te faz querer chorar rindo. Amo músicas que conseguem causar essa sensação – e não são muitas! Eu tenho essa coisa quase transcendental com música. Esse show com as músicas da Marisa tem a voz muito em primeiro plano e me exigiu muito mais do que os meus shows de música autoral. As canções dela são cheias de sobe e desce, soam simples, mas são trabalhosas para quem vai cantar, ainda mais quando ela bebe na fonte do samba, que tem aquelas melodias mais difíceis, mas também tem uma grandeza.
Estou gostando cada vez mais desse momento do cantar, estou me descobrindo muito nisso. Eu tenho uma cabeça de produtor: como me produzo, super criava o conceito do negócio, “quero que o disco tenha essa cara, esse título e vá nessa vibe aqui”. Aí eu produzia tudo e fazia primeiro o arranjo, depois a melodia e então a letra. E a voz, para mim, era como se fosse mais um instrumento que eu colocava ali. Agora estou descobrindo esse “lugar” e estou achando a minha voz mais madura do que era antigamente. Quando canto ao vivo, sinto que o público se conecta mais, porque estou me expondo mais. Cantar é se expor, você consegue colocar para fora um monte de coisas.
Qual é a sensação de “conquistar Marisa”?
Muito boa, sabia? Porque eu sou fã! Admiro vários artistas, mas não sou fã. Acho que essa questão de gosto é muito pessoal, tem artistas que sei que são músicos incríveis, cantores maravilhosos, mas que não me pegam, não batem. A Marisa me emociona, eu ouvi muito durante a vida e continuo ouvindo. Então para mim foi meio surreal! (risos) E ela é aquela canceriana bem canceriana, ela gosta disso, desse carinho, ela é muito diva mesmo e, ao mesmo tempo, é super iconoclasta, você conhece a Marisa e em cinco minutos ela fala “pega uma cerveja aí”! No palco sim, ela tem essa coisa gigante, mas na vida ela é muito simples. Tanto que você não vê a Marisa com global, nas festinhas, ela não faz essa parada, não é o negócio dela, seus amigos são gente de tudo quanto é tipo. E eu acho maravilhoso!
E essa oportunidade de trocar com essa pessoa tão foda deve ser surreal para você enquanto artista.
Muito, e eu demorei a encarar isso de uma forma natural, hoje eu encontro a Marisa e é realmente normal. Continuo sendo fã e admirando, mas já não tem aquela “coisa”. Eu demorei para ficar tranquilo, antes era “caraca, é a Marisa aqui do meu lado, que bizarro”.
Você tem tido oportunidade de fazer parcerias com artistas brasileiros incríveis, que são lendas da música. Ainda tem uma colaboração dos sonhos na cabeça ou já matou todas as suas vontades?
Nossa, tenho várias! Trabalhei muito com cantores, com a Gal Costa, o Lulu Santos, a Marisa, a Fernanda Takai… Tenho vontade de fazer coisas com músicos também, tipo o João Donato, ele é maravilhoso, tão chique! Aquele piano cool… E o Caetano, sou apaixonado por ele em todos os sentidos. Acho o Caetano gato, o Caetano tem 73 anos, bicho, eu fui ver um show dele em São Paulo no ano passado e, pô, o cara não desafina uma nota. E eu sou chato com essas coisas, acho que por causa do violino. (risos) Mas é isso, o cara está aí impecável…
E ele segue mudando o mundo! Você tem nomes gringos para me falar?
Tenho… Mas, nossa, para mim soam tão distantes!
Pois é! É que a gente pensa em você e na sua música e não é a primeira coisa que vem à cabeça. Nem a segunda, nem a terceira. Por isso achei que seria curioso.
Não sei se posso falar desse jeito, até queria conversar com uns amigos mais ativistas para saber se é legal colocar as coisas nesses termos, mas eu gosto muito da corrente negra da música. Samba, jazz, R&B, hip hop, tudo me agrada muito. Já o rock não me pega, eu acho duro, e gosto da malemolência que a música negra tem, que é dançante! Ela nem precisa ser rápida, pode ser calma, mas tem uma coisa que te seduz e que eu acho maravilhosa! De gringos eu diria Erykah Badu, por quem sou apaixonado, D’Angelo e Tyler, The Creator… Amo esse cara, ainda mais depois que descobri que ele é um puta pianista. Você já o viu tocando piano? É assustador! Tem uma sessão no YouTube, toda em preto e branco, dele com uma banda chamada BadBadNotGood, que é uma banda de jazz, com ele no piano, rimando. É surreal!
Você consegue pensar em uma ou duas músicas que escuta e pensa “nossa, como eu gostaria de ter feito isso”?
Ah, sim! Eu estava falando algo do tipo esses dias. Tem uma de um disco do Caetano que eu acho maravilhosa. O Caetano tem essa coisa que todo esse artista deveria pelo menos tentar fazer: ele está sempre em movimento, você olha para ele e fica curioso para ouvir seu próximo disco. A música se chama “Surpresa”, composição dele com o João Donato. Está no disco “Cores, Nomes”. É uma música linda! E queria ter feito “Por Causa de Você”, do Tom Jobim. É tão bonita, a harmonia é maravilhosa, a melodia, a letra, a composição… Me dá vontade de chorar! Só no meu Spotify tenho umas seis ou sete versões dela!
Fotos: Carolina Vianna | Entrevista: Fernanda Meirelles
MAIO DE 2017