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Jessica Queiroz

A paulistana Jessica Queiroz é diretora de cena e roteirista.

É muito vencedor conseguir trabalhar com Cinema no Brasil. Acho muito foda. Como você se relaciona com esse fazer e com o fato de que você consegue mesmo viver trabalhando com filmes?

Essa coisa do “ser difícil” é sempre uma questão pra todo mundo que está ao meu redor, sempre conversamos muito sobre. A gente vira e mexe quer desistir (risos). Mas um lado é: eu não sei fazer outra coisa. Eu amo muito o que faço, gosto de contar histórias, então é meio difícil pra mim pensar em outra possibilidade que não seja usar palavra e imagem em movimento. Lembro de quando gravei algumas mulheres negras do audiovisual, tanto novas quanto pioneiras, e perguntei para a Cristina Amaral, a primeira montadora negra do cinema brasileiro, uma gênia, se ela pensava em desistir. Ela falou uma coisa maravilhosa: “é meu direito estar aqui, então não tem como desistir, é pra eu estar aqui.” Toda vez que estou desanimada, afinal, o desânimo também aparece, ainda mais nesses últimos anos que vivemos, essa frase surge no meu ouvido várias vezes. Querer desistir ou ficar muito cansada é normal, mas eu sei que posso abrir caminhos para outras pessoas, então isso movimenta o querer continuar.

Você é muito importante no lugar em que está inserida. Deve ser muito legal poder abrir caminhos, abrir espaço para que outras pessoas venham, mas também acredito que isso envolva alguma pressão. Como você se sente?

Eu não me sinto “desbravadora”. Veio muita gente antes de mim, só estou sendo uma continuidade de mulheres negras que vieram antes. Sou de uma geração que gosta de achar que está inventando a roda, muitos querem ser os primeiros naquilo que fazem, mas isso não muda muita coisa, né? Eu lembro de sair em um lista tipo “a primeira mulher negra a entrar no Festival de Brasília na Mostra Competitiva…” e tudo mais, mas isso não muda muita coisa, não ganhei mais dinheiro por isso, por exemplo. Mas quando penso em abrir caminhos e trazer mais dos meus para o meu lado, é menos solitário. Me incomodo muito mais com a solidão num trabalho, em ser “a única” num lugar.

Estar ali ajudando esse coletivo a ser formado é algo que te anima, né, que te bota para frente.

Super. Tem pressão quando você escolhe equipe, é uma negociação incessante com o mercado, porque você tem que colocar o seu nome em jogo, está botando a mão no fogo por pessoas que o canal ou a produtora não conhecem, mas fizeram isso por mim em algum momento. Às vezes você erra e tudo bem, mas costumam ser mais acertos do que erros. Dá frio na barriga, não é confortável ou fácil, mas, quando dá muito certo, os bônus são muito melhores!

Como está sendo olhar para “Mila no Multiverso”, esse projeto tão gigante que você dirigiu, tão lindo e importante que está indo para o mundo?

Eu estou feliz, a gente estava com medo de que fosse um flop total (risos). Trabalhamos com uma faixa etária que não tem mídia social, então não conseguimos medir muito como as outras séries fazem, que você olha no Twitter e tem um monte de gente falando sobre, a faixa etária prioritária do Mila é de 7 a 11 anos, são crianças. Tem adultos e adolescentes assistindo, consigo mensurar um pouquinho a partir deles e o que estamos recebendo já me deixa muito feliz, saber que tem criança vidrada na série… É uma história gostosa, em que acredito. Lembro de ler o roteiro e ficar muito empolgada. 

Eu leio muitos roteiros, sou uma pessoa que, bom, nego poucas coisas, até porque preciso trabalhar. Lembro que ouvi um amigo que tem mais grana falando “só faço coisas que tocam o meu coração profundamente” e eu falei “que bom que você tem essa oportunidade (risos), eu não tenho”.

Eu queria ser essa pessoa, muito!

Eu também queria, só fazer coisas que me fazem chorar… Não dá. 

Mas o Mila tocou, lembro de ler e pensar que gostaria de ter assistido àquilo quando era pequena, teria me divertido muito: a protagonista é negra, um dos personagens é gay – e beija na série! Um monte de coisas que achamos que não conseguiríamos colocar em tela conseguimos e sou bem feliz com isso, é uma história sobre relação familiar, a perda de comunicação entre uma mãe e uma filha, como a gente volta a criar esse laço que em um momento se perdeu? É algo que acontece bastante nas famílias e se a série puder ser um inicio de conversa para alguém, já vou ficar muito feliz. Ontem eu fui ao canal [Disney] e lá a forma de medir é diferente, eles conseguem mensurar e está rolando bem! Se tem um monte de criança assistindo, fico feliz!

Sua iniciação na arte veio bastante da escola, você teve um incentivo grande de professores. Muito legal ver como foi clara a importância de educadores na sua vida.

Eu estudei numa escola pública aqui em Ermelino Matarazzo e ela era a segunda pior escola do ranking do estado de São Paulo, então é isso, a gente tinha professores que eram muito dedicados e apaixonados e professores que não, mas eu entendo que o ensino público desmotiva muito quem está na categoria. E aí um desses professores, que era muito apaixonado pelo ofício, resolveu abrir um curso de literatura periférica e teatro. A gente estudava Teatro do Oprimido, Augusto Boal e tal, e foi onde eu comecei a pensar em arte como possibilidade. Depois acabei fazendo um curso preparatório de Audiovisual do Instituto Criar e entendi de fato o que eu gostava e queria fazer, mas acho que essa primeira formação eu levo comigo até hoje, sempre leio Augusto Boal e acredito que todo mundo é ator e ator político e o meu set é sempre pensado no impacto não só na vida dos atores, mas da equipe inteira do set – muito sobre como as pessoas saem de lá: ficamos 12 horas juntos, então parte da responsabilidade é minha, tem uma parte humana que precisa ser olhada e de certa forma cuidada, então eu sempre tenho esse olhar para os meus trabalhos, tanto os de publicidade quanto os de conteúdo, ficção.

Hoje você também trabalha com publicidade, não só com conteúdo, é isso?

Estou nesse momento fixa fazendo publicidade com a Paranoid e, para, conteúdo, sou livre, leve e solta (risos), vou para o projeto que me chamarem. “Mila” foi pela Boutique Filmes! Mas eu faço as duas coisas, eu gosto de publicidade, gente. É difícil, sim, mas me dá a possibilidade de fazer coisas que não consigo fazer no cinema ou em conteúdo. Tenho possibilidade de usar equipamentos diferentes, de contar com equipes que eu sei que não vou ter fora dali… E funciona também como exercício de pensar as coisas. Trabalhei anos em agência e tem uma coisa que eu vejo nos diretores em geral que são do autoral e vão para os canais: eles sofrem muito, porque no cinema você não tem o cliente, né? Você não tem o canal, você faz o que quiser. Como eu vim da publicidade, eu sei lidar quando uma coisa não é exatamente minha, afinal, ela tem outro dono também e eu tento fazer esse acordo para que eu fique feliz, para que ele fique feliz e a gente consiga se entender nesse caminho. Quando eu trabalhava em agência, pesquisava muito, era montadora, fazia pesquisas para fazer monstros e isso me ajudou na direção, porque eu sou uma pessoa que traz uma decupagem cheia de referências e já vou para um caminho que facilita pra toda a equipe. 

O que você falaria para as pessoas que tentam trabalhar com Audiovisual e não conseguem oportunidades? 

Que responsa. (Risos) Acho que, se fosse ano passado, a minha resposta seria bem desanimadora, mas, esse ano, com a volta do Ministério da Cultura, com uma Ancine de fato de volta, num momento em que a gente tem uma secretária do Audiovisual maravilhosa, que é a Joelma Gonzaga, uma mulher preta de Salvador, que já foi executiva de várias produtoras, eu acho que estamos com perspectivas! O que eu sinto sobre o Audiovisual é que as pessoas gostam muito de ler sobre trajetórias, “o fulano fez o primeiro longa com 30 anos, nossa, eu já estou com 33 e não fiz nada”, o Audiovisual é um negócio muito doido, cada um tem um caminho, cada um veio de uma trajetória diferente, vai contar muito se a sua família tem grana, então é bom olhar para trajetórias que são muito parecidas com a sua! Sou muito a favor de ouvir histórias de “fracasso” também (risos), lembro de uma época em que eu estava bem chateada, tentando me animar, e comecei a listar os “nãos” que eu já disse na vida. Eram tantos! Claro, olhei também para os “nãos” que eu recebi, mas pensava no por que de eu ter dito “não” pra alguém para respectiva vaga. Não era sobre a pessoa, era sobre o que eu precisava no momento: a gente entrevista um monte de gente em publicidade. Temos que tentar pegar esses “nãos” e não levar muito para o pessoal. Então, se a pessoa está desanimada, ela tem que ver se ela ama muito isso, porque é difícil, audiovisual não é fácil. E se ela ama muito, acho que é bom estar com pessoas que amam tanto quanto ela e que tem uma escuta. Toda vez que eu desanimava, sempre tinha alguém para me dar ombro e um empurrãozinho, isso é muito bom. Importante não ter pressa, porque ter pressa na nossa área não funciona, não.

Existe uma parte favorita no seu trabalho, que você ame muito ver acontecendo?

Tem uma coisa que é quase uma comemoração do acerto, são pequenas mágicas que acontecem no set: duas pessoas nunca contracenaram e aí você vê que criou-se uma ligação, que o negócio saiu: se fossem pedrinhas, sairia até faísca, sabe? Quando isso acontece e eu vejo o olhar dos dois contracenando, tem uma força! Em “Mila” aconteceu algumas vezes. Não é todo dia que acontece, mas eu fico muito feliz! E eu amo quando o set é bom. Tenho tido sorte de poder escolher equipes e fazer esse lugar ser agradável. Tem uma comunhão no set que é muito gostosa e isso me recarrega, porque assim, é muito exaustivo e, quando você tem uma equipe que está ali com você, que te ajuda e é gostoso, dá um ânimo!

Nessa mesma série de entrevistas que eu fiz, uma das entrevistadas era a [documentarista e professora de Cinema] Lilian Solá Santiago, e ela fala uma coisa que carrego até hoje, “eu acho que o set de filmagem é uma sociedade que deu certo, não adianta eu ser a diretora que manda, que idealiza e não sei mais o quê, caso o maquinista, o assistente de maquinaria não empurre a grua no tempo preciso, a cena não sai”, cada indivíduo importa muito para que a coisa vá pra frente. É realmente bonito quando não é com gritaria, quando as pessoas estão ali felizes.

O que você tem vontade de fazer a curto prazo? De estar fazendo em três ou quatro anos?

Tenho algumas ideias de longas-metragens, duas. Queria muito que eles saíssem, são histórias que eu quero muito contar.

Você acabou de tirar uma foto 3×4 e pedem para você se descrever, tanto fisicamente quanto com relação a quem você é, como você se vê, onde você está. Como seria esta descrição?

Esse vai ser um exercício engraçado. Vamos lá. Eu sou uma mulher preta de pele clara, tenho cabelos cacheados loiros tingidos, olhos castanhos escuros – olhos grandes -, bochechas também, mais carnudinhas, mais fofinhas, lábios também grandes. Estes aí são os meus traços negroides, dos quais eu tenho muito orgulho, nariz batatinha, redondinho. Sou uma pessoa que gosta muito do que eu faço, me divirto fazendo o que eu faço, gosto de rir no set, gosto de piadas irônicas e ácidas – esse é o meu tipo de humor, é como eu lido com as coisas no meu dia a dia. E sou uma pessoa calma, mas que puxa muitas coisas para si, então cheia de problemas gástricos (risos), porque não solto muito o que falo, mas estou tentando melhorar. É isso! 

Fotos: Carolina Vianna

Entrevista: Fernanda Meirelles